Cristina e o banco de trás - Clayton Zocarato


Ambientada em algum momento dos anos 2000, em suas baladas que nunca pareciam ter fim.

Parte 1 – Sleeping In My Car – Roxette

Clayton sempre soube que existiam mundos diferentes dentro da escola. O mundo dos populares — com risadas exageradas, festas todo fim de semana e os abraços fáceis nos corredores — e o mundo dele. Silencioso. Entre livros, fones de ouvido e o medo constante de parecer estranho.

Cristina era de outro mundo. Chegava sempre com um grupo ao redor. Cabelos soltos, perfume que deixava rastro no ar. Parecia feliz. Mas, às vezes, Clayton via algo a mais. Quando ela ficava sozinha, mexendo no celular no pátio, olhando fixamente o nada. Como se esperasse por alguém que nunca vinha. Ou fugisse de alguém que sempre estava perto demais.

Ele a observava de longe, nos intervalos, no ônibus, nas festas — ela sempre dançava, mas seus olhos pareciam distantes. Um tipo de saudade que ele reconhecia. Mas nunca ousou falar com ela. Nem mesmo uma vez.

Até aquela noite.

Era uma festa da escola, daquelas que se arrastam até depois da meia-noite. Gente bêbada, risos falsos, músicas altas e luzes piscando. Ele estava lá por insistência dos amigos. Sentado no sofá do fundo, fingindo que curtia, mas contando os minutos para ir embora.

Foi quando a viu sair. Cristina, sozinha, caminhando apressada. Ele sentiu um aperto no peito, levantou e foi atrás. Era loucura. Mas o corpo foi antes do medo.

No estacionamento, ela estava sentada no capô do carro. Sandália na mão, olhos molhados.

— Tá tudo bem?

Cristina olhou. Um segundo de surpresa. Depois assentiu.

— Só... um daqueles dias.

Ele hesitou.

— Posso ficar?

Ela abriu a porta do carro. Silêncio virou permissão.

Dentro do carro, Sleeping in My Car tocava baixinho. O banco cheirava a perfume barato e cigarro. Ela segurava o volante como se tentasse segurar a si mesma. E, pela primeira vez, estavam frente a frente.

— Você nunca me olhava — disse ela, quebrando o silêncio.

— Eu sempre olhei. Só... você nunca percebeu.

Ela virou o rosto. Havia lágrimas ali.

— Eu achava que você me achava superficial. Só mais uma.

— Você achava isso mesmo?

Ela riu. Um riso meio torto, bonito.

— Achava. Mas agora estou aqui. No carro. Com você. Estranho, né?

— É. Mas bom.

A música mudou. O rádio chiou. Mas eles não se importaram. A conversa foi fluindo aos poucos, como dois rios tímidos se tocando nas margens.

Cristina contou sobre o pai que via pouco, sobre a mãe ausente em casa, mas presente nas redes sociais. Falou de como dançar era a única forma de esquecer os buracos que doíam. Contou do namorado que nunca foi dela. Das mensagens visualizadas e ignoradas.

Clayton falou pouco. Mas contou o essencial. Que sempre gostou dela. Desde o nono ano, quando ela pediu uma caneta emprestada e ele gaguejou. Contou que escrevia poesia, mas não mostrava para ninguém. Que tinha medo de ser rejeitado até por quem não conhecia.

— Medo idiota, né? — ele disse.

— Não. Eu também tenho — ela sussurrou.

Silêncio. Uma mão perto da outra. Mas sem tocar. Como se o toque fosse um passo longe demais.

E então, Cristina disse:

— Você já quis muito uma coisa e mesmo assim deixou passar?

— Todo dia.

Ela encostou a cabeça no vidro. Os olhos fechados. As lágrimas escorriam sem pressa.

— Às vezes, eu só queria alguém que ficasse — disse ela, quase dormindo.

Clayton não disse nada. Mas ficou.

Ficaram juntos ali até o céu clarear. Quando o sol tocou o vidro, ela o olhou como se dissesse um adeus silencioso. Ele entendeu.

Ela o deixou em casa, e no banco de trás ficou um casaco que ele nunca buscou. Um gesto pequeno, mas cheio de significado. Porque, às vezes, é mais fácil deixar uma parte de si do que voltar para buscá-la.

Nos dias seguintes, se cruzaram no corredor da escola. Sorrisos breves, olhares longos. Mas nunca mais conversaram. O medo voltou. O mundo empurrou os dois para seus cantos.

Depois da formatura, nunca mais se viram.



Mas, às vezes, no rádio antigo do carro de Clayton, Sleeping in My Car ainda toca. E ele aperta o volante com mais força, como se segurasse a memória. Pensa no que não disse. No beijo que não deu. No abraço que não arriscou.

Cristina, dizem, mudou de cidade. Mas deixou o colégio como uma lenda — aquela garota bonita que dançava com tristeza no olhar. E Clayton? Ninguém se lembrava direito dele. A não ser Cristina.

E ela, em alguma madrugada fria, estaciona o carro em alguma rua vazia e dorme ali, só para sentir de novo a presença de alguém que a escutou de verdade. Talvez ainda guarde o casaco. Talvez ainda espere que, por acaso, ele bata na janela e diga:

— Eu fiquei.

Mas o acaso é silencioso.

E o amor platônico, às vezes, é eterno só porque nunca foi real.

Cristina e o banco de trás – Parte II: 

A carta que nunca chegou

Anos se passaram.

Clayton virou professor de literatura numa escola pequena no interior. Trocou a cidade grande por silêncio, por tardes longas e café morno. Tinha poucos amigos, menos ainda amores. Vivia tranquilo, mas com aquele tipo de tranquilidade que carrega saudade.

Guardava ainda uma caixa no alto do armário. Dentro, um casaco velho e um bilhete escrito à mão:

“Se você quiser voltar… sabe onde me encontrar.”

Mas ele nunca teve coragem de responder. Porque amar em silêncio era mais fácil do que enfrentar o que poderia ter sido.

Até o dia em que recebeu uma carta. Envelope sem remetente. Papel grosso. Letra inclinada.

“Oi, Clayton.

Não sei por que escrevo agora. Talvez porque sonhei com você esta semana. Estávamos de novo no carro. A música tocava, e eu ainda chorava. Mas no sonho você segurava minha mão.

Isso nunca aconteceu de verdade, né?

Às vezes penso que, se tivéssemos nos beijado, tudo teria sido diferente. Mas talvez teria sido só mais uma história incompleta, como tantas.

Eu ainda danço, sabia? Mas agora danço sozinha. Não porque ninguém me ama. Mas porque parei de esperar que alguém me salve.

E você?

Ainda escreve? Ainda lembra?

Queria dizer que, naquela noite, você foi o único que ficou.

Eu nunca esqueci.

– Cristina.”

Clayton leu a carta sete vezes. No fim, chorou baixinho.

Naquela noite, não dormiu. Acendeu um cigarro velho, coisa que não fazia mais. Colocou no rádio uma playlist antiga, e lá estava ela — Sleeping in My Car. O som doeu. Mas doeu bonito.

Uma semana depois.

Era uma tarde comum. Alunos saíam da escola, gritando, chutando pedrinhas. Ele ajeitava os livros na mochila, pronto para ir embora, quando ouviu:

— Professor Clayton?

A voz era doce. Madura. Conhecida.

Ele virou e, por um segundo, pensou que era sonho.

Cristina estava ali. Mais velha, sim. Os olhos com rugas de cansaço. Mas ainda tinha aquele olhar — entre dor e beleza.

— Achei que você nunca responderia — disse ela, com um sorriso pequeno.

Ele hesitou. Depois, tirou do bolso um envelope amassado.

— Eu escrevi. Só não tive coragem de enviar.

Ela assentiu.

— Eu também quase não vim.

Ficaram em silêncio. O tempo não cobrava pressa.

— Ainda tem o casaco? — ela perguntou, meio rindo.

— Guardei como se fosse relíquia.

— E se a gente não repetir os mesmos erros?

Clayton sorriu, tímido.

— E se for tarde demais?

Cristina olhou para o céu. Estava nublado. Como naquela festa antiga.

— Nunca é tarde demais para dizer o que ficou preso. Mesmo que seja só para saber que o outro também sentiu.

Ele respirou fundo. E então disse:

— Eu te amei. Do meu jeito, calado. Mas te amei.

Ela não respondeu com palavras. Apenas se aproximou e, depois de tantos anos, encostou a cabeça no ombro dele. Ficaram ali por alguns minutos, sem pressa, sem medo, sem planos.

Sem saber se o amor começava ali ou terminava enfim.

Mas certos de uma coisa: nem tudo que não aconteceu é menos real.

Cristina e o banco de trás – Parte III: 

E se fosse agora?

O reencontro foi breve. Um café depois da escola, uma conversa com pausas longas e olhos marejados.

Mas depois daquilo, Cristina voltou a aparecer.

No fim das tardes, ela o esperava no portão. Não diziam muito. Caminhavam lado a lado até a praça mais próxima. Sentavam no mesmo banco. E olhavam os meninos jogando bola como se o mundo estivesse calmo por alguns minutos.



Não falavam do passado. Não precisavam. O silêncio já era a lembrança. E o tempo, o único tradutor possível.

— A gente podia tentar — disse Cristina um dia, mexendo no cabelo como fazia na juventude.

Clayton a olhou com um carinho fundo.

— Tentar o quê?

— Ser o que não fomos.

— E se não der?

Ela sorriu. — Pelo menos vai ter dado um pouco.

Algumas semanas depois, foram ao centro da cidade. Entraram numa loja velha de discos. Reviraram vinis, pegaram fitas cassete com cuidado quase sagrado.

Quando encontraram um CD antigo da Roxette, Clayton o segurou com força.

— “Sleeping in My Car.” Ainda machuca.

— Machuca bonito — ela respondeu.

Ele comprou o CD. Naquela noite, estacionaram o carro num lugar alto, de onde se via a cidade inteira. Era simples, era frio, e ainda assim, parecia certo.

— Eu nunca te beijei, Cristina. Nem naquela noite. Nem depois.

— Eu sei. E por isso doeu tanto.

Ela virou o rosto devagar. Os olhos se encontraram.

— E agora? — ele perguntou.

— Agora, você pode. Sem pressa. Sem medo. Sem precisar dormir no banco de trás.

E então ele a beijou.

Um beijo longo, de dois corpos que sabiam que estavam atrasados demais para correr, mas ainda a tempo de sentir.

Eles não se tornaram um casal perfeito. Discutiam. Discordavam. Traziam cicatrizes.

Mas algo havia mudado: não era mais um amor platônico. Era real. Vivo. Feito de gestos pequenos, mensagens simples, esperas calmas e noites com música antiga e silêncio compartilhado.

Nas boates da memória, eles ainda dançavam jovens, separados, olhando um ao outro de longe.

Mas, no presente, dançavam devagar, com os pés descalços na cozinha, com cheiro de café queimando e luz baixa da geladeira acesa.

A saudade do que não foi nunca, desapareceu por completo.

Mas se transformou em outra coisa: em gratidão por ter chegado tarde, mas ter chegado.

E, às vezes, quando o rádio tocava aquele refrão:

I go sleeping in my car… I will undress you…

... eles sorriam um para o outro. Não de tristeza.

Mas de alívio.

Porque agora, finalmente, tinham onde dormir.



Clayton Alexandre Zocarato

Possui graduação em Licenciatura em História pelo Centro Universitário Central Paulista (2005) - Unicep - São Carlos - SP, graduação em Filosofia pelo Centro Universitário Claretiano (2016) - Ceuclar - Campus de São José do Rio Preto – SP, Técnico em Comércio Exterior pelas Faculdades Eficaz, e atualmente cursa Serviços Jurídicos e Notoriais na Unimar. Escrevo regularmente para o site www.recantodasletras.com.br usando o pseudônimo ZACCAZ, mesclando poesia surrealista, com haikais e aldravias..Formado Especialista em Medina y Arte com ênfase em Gilles Deleuze e Equizoanálise   onde é também  pesquisador do Centro de Medicina y Arte  de Rosário – Argentina, sendo o primeiro brasileiro a atuas nesse centro de pesquisa. Especialista em Ensino pela Ufscar, especialista em Psicopedagogia Institucional pela Fundepe – Unesp, Especialista em História da África pela Faculdade de Minas Gerais.

·                  Email: claytonalexandrezocarato@yahoo.com.br

·                  Instagram: Clayton.Zocarato

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Comentários

  1. Gostei da história. Só não concordo com a reflexão proposta.
    O amor não é simplesmente um sentimento dependente de coragem, perdão ou segundas chanes...
    Para Lacan é um fenômeno estrutural que envolve a relação do sujeito com o simbólico, o real e o imaginário.
    Particularmente, a fase platônica do amor de Clayton e Cristinade me emocionou mais.

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