Dançar Sem Tocar Inspirado em "Dance Without Sleeping" – Melissa Etheridge por Clayton Alexandre Zocarato

 

Lisboa acordava lenta, como quem carrega séculos nos ombros.

As ruelas estreitas de Alfama ainda estavam úmidas da madrugada, e o cheiro do café forte começava a subir pelas janelas abertas dos apartamentos antigos, misturado ao sal do Tejo.

Na esquina da Rua dos Remédios, Dulce Flores já estava sentada no parapeito do terceiro andar, enrolada no seu casaco velho, olhando os telhados alaranjados se acenderem com os primeiros raios do sol, sentindo sua solidão diária.

Ela morava ali desde menina.

Viu os vizinhos partirem, os turistas tomarem conta, e os preços subirem como balões ao vento.

Ficara — não por escolha, mas por falta dela.

Aos cinquenta e dois, Dulce era invisível para muitos. Assim como muitos, trabalhava como empregada de limpeza em um hotel de luxo na Baixa, onde limpava os quartos de estrangeiros que falavam alto e deixavam gorjetas pequenas.

Mas naquela manhã, havia algo diferente.

A noite anterior fora longa. não dormia bem há meses, desde que a mãe morrera e o silêncio se tornou companheiro.

Em vez de dormir, ela dançava.

No meio da madrugada, com os fones nos ouvidos, movia-se pela sala apertada, guiada pela voz rouca de uma cantora americana que descobrira por acaso: "I don't sleep, I dance..."

E ali, dançando entre a cadeira quebrada e o tapete desbotado, se sentia um pouco viva.

Cada passo era uma recusa à apatia.

Cada giro, uma pequena rebelião contra o peso das horas.

Ela dançava não para esquecer, mas para lembrar-se de que ainda havia música dentro dela.

Lisboa, com suas fachadas desbotadas e bondes barulhentos, parecia refletir essa resistência silenciosa.

Era uma cidade partida entre o encanto e o abandono — onde fados choravam nas tabernas enquanto jovens sorridentes brindavam espumante nos rooftops.

Dulce observava tudo isso com uma calma melancólica.

Não invejava, mas também não se iludia.

Naquela manhã, ao sair para o trabalho, passou por um mural novo no beco da Bica.

Uma mulher de olhos fechados, cabelos ao vento, pintada com traços fortes e cores quentes.

Ao lado, uma frase escrita em letras pequenas: "Mesmo sem dormir, há quem dance com a esperança no peito."

Dulce sorriu. Pela primeira vez em semanas.

No final do expediente, já com os pés cansados e os olhos pesados, subiu a colina em direção a casa. Mas antes de entrar, ficou parada por um momento olhando o Tejo.

 O rio seguia seu curso, indiferente e imenso, como a própria vida.

E ali, sozinha, com Lisboa iluminada à distância, Dulce fechou os olhos e balançou levemente o corpo. Não era uma dança inteira — apenas um início. Um passo. Um gesto pequeno, mas cheio de vontade.

Ela sabia que ainda haveria noites sem sono.

Mas também sabia que, enquanto houvesse música, dançaria sozinha, sem tocar.

As janelas dos “alfacinhas”,  estavam fechadas, e o eco dos seus passos solitários parecia mais alto naquele silêncio de quase amanhecer.

Ela cruzou a Mouraria, onde os cheiros da noite anterior – especiarias indianas, vinho derramado e fumo – ainda se agarravam às paredes.

O bairro mudara, mas também não.

Era esse o paradoxo da cidade: tudo se movia, menos o que realmente importava.

A solidão não era nova — apenas se tornara mais nítida, mais dura.

Trabalhava como empregada de limpeza num hotel boutique da Baixa-Chiado, onde os hóspedes tiravam selfies com o elevador de Santa Justa ao fundo e perguntavam em inglês onde era o "bairro mais autêntico".

Ela não respondia. Não sabia o que era "autêntico" ali.

Para ela, Lisboa era feita das pequenas coisas que ninguém fotografava: o cheiro de roupa molhada no estendal, o som do vizinho tocando guitarra no andar de cima, o barulho metálico do elétrico 28 curvando-se nas ladeiras.

Mas à noite — ah, à noite — encontrava uma fresta de liberdade.

Depois do jantar simples e do banho quente, vestia a camisola larga e punha os fones nos ouvidos.

A voz de Melissa Etheridge enchia o quarto, rouca e urgente, como se falasse só com ela.

Dulce fechava os olhos e deixava o corpo seguir.

Dançava com os pés descalços no chão frio, entre móveis velhos e lembranças empoeiradas. Dançava como quem chora. Como quem reza.

Era um ritual. E, como todo ritual, sagrado.

Certa manhã, ao limpar o chão do terraço do hotel, ouviu uma voz familiar vinda do rádio da recepção.

Era fado — mas não um qualquer.

Era Mariza. E, como por impulso, Dulce comentou com a recepcionista:

— Esta canta como quem viveu mil vidas.

A recepcionista sorriu.

— Mariza é vizinha aqui do bairro. De vez em quando aparece por cá. Quer que eu lhe apresente, se um dia vier?

Dulce riu, como quem não acredita em milagres.

Mas naquele mesmo mês, numa tarde cinzenta, viu-a. Mariza, em carne e osso, entrando no hotel com um lenço nos cabelos e óculos escuros.

Dulce parou, surpresa, extasy, o esfregão nas mãos. Mariza olhou-a, leu algo em seu rosto e cumprimentou com gentileza.

— Está tudo bem?

Dulce hesitou, depois disse:

— Eu danço. Às vezes. Quando não consigo dormir.

Mariza sorriu de leve.

— Então estamos em sintonia. Eu canto quando não consigo calar a dor.

Trocaram apenas essas palavras.

Mas para Clara, foi suficiente. Ela passou a levar isso como um segredo bonito, um amuleto silencioso.

Nos meses seguintes, Clara passou a observar melhor o seu bairro.

A senhora Idalina, que vendia flores na esquina, agora deixava rosas no banco da praça para “quem precisasse de cor no dia”.

O João, rapaz do bairro que vendia castanhas no inverno, organizava pequenas rodas de poesia no Largo da Graça.

 E o seu sobrinho André — que antes se envolvera com más companhias — começara a ensinar break dance à crianças imigrantes no pátio de uma escola pública.

— A dança salva, tia — ele dissera uma vez. — Não salva tudo, mas salva o que importa.

Dulce viu ali o mesmo brilho que sentia quando dançava sozinha.

Havia juventude, mas também propósito.

A cidade era dura com os seus — os que não tinham contratos, nem redes sociais, nem Airbnb.

Mas mesmo assim, havia movimento. Resistência. Como uma batida de tambor no fundo do peito.

Na véspera do seu aniversário, Dulce decidiu subir até o Miradouro da Senhora do Monte.

Sozinha, sem pressa.

Levou um vinho barato e um copo de plástico.

Olhou as luzes da cidade acesas como estrelas terrenas e lembrou-se da mãe, dos dias bons, das dores que vieram depois.

Tirou os sapatos. Ligou a música. E dançou.

Sozinha, sim.

Mas não mais invisível.

Lisboa estava inteira diante dela, como um palco aceso. E Dulce, era protagonista do seu próprio silêncio.

Dançava sem dormir — não para fugir da solidão, mas para dizer que ela não a venceria.

Porque há dores que não se curam com palavras.

Mas há noites em que a esperança dança — e isso basta.


SOBRE O AUTOR

Clayton Alexandre Zocarato


Possui graduação em Licenciatura em História pelo Centro Universitário Central Paulista (2005) - Unicep - São
Carlos - SP, graduação em Filosofia pelo Centro Universitário Claretiano (2016) - Ceuclar - Campus de São José do Rio Preto – SP.. Escrevo regularmente para o site www.recantodasletras.com.br usando o pseudônimo ZACCAZ, mesclando poesia surrealista, com haikais e aldravias.. Onheça mais do autor!

·                  Email: claytonalexandrezocarato@yahoo.com.br

·                  Instagram: Clayton.Zocarato


Clayton Alexandre Zocarato faz parte do programa "Escritores de Sucesso" faça parte também deste programa do Jornal e Editora Alecrim.

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