Quando a Música Pediu Socorro


        As luzes coloridas da quadra da escola piscavam como constelações dançantes, refletidas nas lentes dos óculos que quase escorregavam do nariz de Lucas.

            Era a última sexta-feira de novembro de 1992, e o colégio municipal havia transformado seu ginásio em um salão de sonhos para o tradicional baile de primavera.

            Antonio observava o ambiente com os olhos de quem nunca pertencera aquela escola, mas sempre imaginara.

            Usava um terno marrom emprestado do irmão mais velho, um tanto largo nos ombros e com cheiro de naftalina.

            Sentia-se como um figurante deslocado num filme de romance juvenil, daqueles que passavam depois da novela.

            Os cabelos, cuidadosamente penteados com gel barato, resistiam aos poucos ao calor humano que fervia o salão.

            E então, ela entrou.

            Helena era o nome que ecoava baixinho nos corredores desde março, quando se transferira de outra escola.

            Tinha olhos que lembravam o céu ao entardecer, quando o azul e o dourado brigam por espaço.

            Usava um vestido azul-petróleo, rodado e tímido como ela.

            Seus passos lembravam o som de páginas virando — suaves, incertos, com aquele cuidado de quem não quer incomodar o mundo.

            Antonio  a viu, e algo no peito gritou — não em desespero, mas em esperança.

            A música mudou.

            Os  primeiros acordes de “Cry for Help” encheram o ar como um sussurro vindo de longe, e os corpos no salão começaram a desacelerar.

            Casais se formavam como por mágica, pares antigos e novos, reencontrando-se sob a bênção de uma balada romântica.

            O som dos alto-falantes chiavam um pouco, como se também estivessem emocionados.

             E no meio daquele som, algo dentro de Lucas se partiu — ou se abriu, ele nunca soube dizer ao certo.

            A canção não pedia por socorro apenas; ela implorava por conexão, por presença, por coragem.

                        Antonio sentiu que aquele era o momento.

                        Não porque ele estivesse pronto — ele nunca estaria — mas porque perder aquele instante seria como deixar escapar um cometa raro.

            Respirou fundo, cruzou a quadra com passos vacilantes e se pôs diante dela.

            — Oi… Helena, né? — perguntou, com a voz arranhada como fita rebobinada demais.

            Ela assentiu com um sorriso gentil, os olhos ainda fugindo dos dele.

            — Você quer… dançar?

            Helena hesitou.

             Não por medo, mas por timidez.

             As mãos seguravam a barra do vestido como se fossem âncoras, e o coração dela batia no compasso da música que enchia a alma mais do que os ouvidos.

            E então, com a mesma doçura de um botão que decide florescer, ela estendeu a mão.

            Lucas sentiu os dedos dela como vento morno num dia frio — leves, confiantes apesar da hesitação. Conduziu-a até o centro do salão, e ali, sob a luz difusa de um globo espelhado, eles começaram a dançar.

                        Não sabiam dançar bem — e era isso que tornava tudo mais bonito.           

                         Seus passos se desencontravam às vezes, os ombros se tocavam com timidez, os olhares se cruzavam e se desviavam logo em seguida.

            Mas estavam ali. Juntos. Como dois pedaços de silêncio que encontraram a melodia certa.

            Enquanto Rick Astley cantava "All that I need is to cry for help.", Lucas se perguntava o que seria a verdade deles.

            Talvez a verdade fosse aquela — a de dois adolescentes encontrando abrigo um no outro, mesmo que só por uma canção.

            Mesmo que tudo fosse se desfazer ao final da noite.

            Mas naquele momento, nada mais existia além das mãos entrelaçadas, do perfume leve dela que lembrava lavanda e tardes de domingo, e da promessa não dita de que o mundo poderia, sim, ser mais gentil.

            Quando a música chegou ao refrão, Helena encostou a cabeça no ombro dele, e Antonio sentiu o tempo parar.

            O coração batia forte, mas não de medo — era uma batida de gratidão.

             Porque alguém o escolhera.

            Porque alguém o ouvira sem que ele precisasse gritar. Porque naquele baile, ele não era mais invisível.

            "Cry for help is all I need… All I need is a cry for help.…"

            A música parecia saber deles.

            Parecia tê-los observado o ano inteiro, desencontrados nos corredores, envergonhados na hora da educação física, silenciosos na biblioteca.

            E agora, dava a eles um palco de liberdade.

            Quando a canção terminou, Helena se afastou um passo, mas os olhos ficaram.             Sorriu, e pela primeira vez, Antonio  soube que esperança tem rosto.

            Um rosto com sardas delicadas e sorriso de primavera.

            — Você dança bem — ela disse, com a voz baixa como se dividisse um segredo.

            — Eu só segui você — ele respondeu, com honestidade juvenil.

            A partir daquela noite, o mundo não mudou de forma drástica.

            Não houve beijo cinematográfico, nem juras eternas no portão da escola.

            Mas algo mudou neles.

            Helena passou a sentar uma carteira mais perto.

             Antonio  começou a usar menos o casaco do irmão e mais sua própria confiança.

            E toda vez que a música tocava no rádio, semanas ou anos depois, eles lembravam.

            Lembravam de um tempo em que pedir socorro não era sinal de fraqueza, mas de coragem.

            Quando um toque de mão dizia mais que palavras, e um passo de dança era o início de uma revolução interna.

            Na inocência daquela juventude tímida, haviam se encontrado — e se salvado — por uma canção.

            Na semana seguinte, os corredores da escola pareciam outros.

             Antonio não andava com pressa, nem com os olhos grudados no chão.

            Helena também mudara — não no rosto ou nas roupas, mas no gesto de esperar.             Esperava por ele na porta da sala, no banco perto da figueira, no intervalo entre as aulas de história e matemática.

            E Antonio, tímido como o som de um vinil riscado, começava a falar. Pouco, mas o suficiente para que ela quisesse ouvir.

            Com o tempo, começaram a dividir mais do que silêncios confortáveis.             Dividiram um guarda-chuva no primeiro temporal de dezembro, dividiam as respostas nos exercícios de química, dividiam o sanduíche de mortadela nos recreios em que o dinheiro só dava para um.

             E acima de tudo, dividiam a esperança de que aquele sentimento bonito sobreviveria ao verão — e, quem sabe, ao mundo.

            Natal chegou como chegam as lembranças boas: rápido demais e envoltas em luzes.

            Antonio a presenteou com um broche em forma de nota musical.

            Não era caro — comprara com o troco dos refrigerantes que deixou de tomar — mas era sincero.

             Helena lhe deu uma fita cassete com músicas gravadas da rádio. Em cada lado, uma seleção de canções que falavam de promessas suaves, de mãos dadas sob céus estrelados e danças lentas em salões iluminados por sonhos.

            No topo da fita, escrito em caneta rosa: “Para que você nunca se esqueça: a gente se encontrou numa música. Talvez isso já seja amor.”



            Antonio ouviu a fita dezenas de vezes naquele verão. Cada vez que “Cry for Help” tocava, ele fechava os olhos e sentia novamente o toque da mão dela, o leve perfume de lavanda, e a doçura de saber que havia sido visto — de verdade — por alguém.

            A escola recomeçou. Os dias estavam mais quentes, o ar mais seco, e os corredores mais apertados com novos alunos e velhas histórias. Mas algo estava diferente.

            Helena não apareceu no primeiro dia. Nem no segundo.

            Na semana seguinte, a coordenadora anunciou que a família dela havia se mudado de volta para o sul, por conta de um problema de saúde do pai.

            “De repente”, disseram. “Sem tempo para despedidas.”

            Antonio não falou com ninguém naquela tarde.

            Caminhou até o campo vazio, sentou-se no banco onde eles costumavam rir sem motivo, e rebobinou a fita de Helena até o começo.

            Apertou o play em seu walkman e deixou que a voz de Rick Astley lhe explicasse o que ele não sabia nomear.

            "All that I need is to cry for help… Somebody please hear me cry for help…

All I can do is cry for help”.

            As palavras caíam como chuva mansa, não para afogar, mas para regar a saudade.

            Anos depois...

            Era 2003. O mundo já era outro.

             As fitas estavam sendo substituídas, por CDs, os rádios agora tinham som estéreo e as roupas tinham perdido o exagero dos ombros largos e dos penteados volumosos.

            Antonio  trabalhava numa pequena loja de discos, no centro da cidade.

            Atendia clientes entre pilhas de álbuns antigos, recomendava bandas com o mesmo carinho de quem recomenda poesias, e, às vezes, regravava fitas cd’s para os saudosistas.

            Certa tarde, uma mulher entrou. Cabelos mais curtos, postura firme. Mas os olhos... aqueles olhos do entardecer.

            O tempo havia passado, mas não o suficiente para apagar. Ela o reconheceu no instante em que sorriu — aquele mesmo sorriso de primavera, intacto.

            Conversaram. Riram das roupas da época, das cartas que nunca foram enviadas, das músicas que ainda cantavam em pensamento. Ela estava de volta à cidade, temporariamente.

             A vida, como a música, os tinha feito dar voltas, mas a melodia ainda estava ali.

            Na vitrola da loja, Lucas colocou a faixa 3 do lado B de uma fita antiga.

            "Cry for Help".

            E ali, entre vinis, memórias e saudade, dançaram outra vez. Sem os olhares de uma escola inteira, sem o nervosismo do primeiro toque, mas com a mesma ternura juvenil que resistia ao tempo.

            Dançaram devagar. Ela encostou a cabeça no ombro dele. Ele segurou a cintura dela com o mesmo cuidado de quem segura um segredo precioso.

            Na inocência daquele reencontro, haviam se encontrado — e se escolhido — de novo.

 


            Epílogo

 

            Anos depois, Lucas ainda mantinha a loja. Um letreiro em néon dizia: “Discos que guardam histórias”.

            No balcão, ao lado de uma vitrola antiga, repousava uma fita com rótulo desbotado, mas ainda legível: Helena: “Para que você nunca se esqueça: a gente se encontrou numa música.”

            E quando alguém perguntava por que aquela fita estava ali, ele apenas sorria e dizia:

            — Porque às vezes, tudo o que a gente precisa… é de uma canção que peça socorro no lugar da gente. E alguém que ouça.

 



Clayton Alexandre Zocarato

Possui graduação em Licenciatura em História pelo Centro Universitário Central Paulista (2005) - Unicep - São Carlos - SP, graduação em Filosofia pelo Centro Universitário Claretiano (2016) - Ceuclar - Campus de São José do Rio Preto – SP, Técnico em Comércio Exterior pelas Faculdades Eficaz, e atualmente cursa Serviços Jurídicos e Notoriais na Unimar. Escrevo regularmente para o site www.recantodasletras.com.br usando o pseudônimo ZACCAZ, mesclando poesia surrealista, com haikais e aldravias..Formado Especialista em Medina y Arte com ênfase em Gilles Deleuze e Equizoanálise   onde é também  pesquisador do Centro de Medicina y Arte  de Rosário – Argentina, sendo o primeiro brasileiro a atuas nesse centro de pesquisa. Especialista em Ensino pela Ufscar, especialista em Psicopedagogia Institucional pela Fundepe – Unesp, Especialista em História da África pela Faculdade de Minas Gerais.

·                  Email: claytonalexandrezocarato@yahoo.com.br

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