"Azul Era a Noite" - por Clayton Zocarato
"Azul Era a
Noite"
Ele vestia azul dos tênis ao
pensamento.
O cabelo tinha gel barato e cheiro
de chiclete sintético, a camiseta fluorescente refletia luzes que pareciam vir
de outra dimensão.
Chamava-se Caio, embora naquela
pista de dança nenhum nome fosse mais real que o baixo pulsando no esterno.
Era 1999 e tudo era uma espécie de
eternidade temporária.
A danceteria se chamava NeoLight, e
juravam que fora um cinema pornô nos anos 80.
Agora, era templo de luz
estroboscópica, onde adolescentes de classe média simulavam o mundo adulto sem
entender o contrato.
Havia cerveja escondida em copos de
refrigerante, beijo apressado com gosto de bala de hortelã e promessas feitas
com olhos fechados para não ter que cumpri-las depois.
A música batia: “I’m blue, da ba dee da ba daa…” — repetida até se tornar mantra,
até fazer sentido como um idioma secreto de quem não sabia ainda falar sobre
solidão.
Caio dançava como se estivesse
tentando escapar de um corpo que ainda não lhe servia bem.
Havia algo nele — e em todos ali —
que era puro ensaio.
Eram jovens imitando adultos que um
dia imitariam de volta aquela juventude, em looping.
Ao seu lado, Ana girava com os olhos
fechados, rindo sozinha.
Usava calça de vinil, batom escuro,
e um perfume doce demais.
Tinha quinze, talvez dezesseis.
Não sabiam nada um do outro além do
que a noite permitia saber: o ritmo, a proximidade, e aquela fé silenciosa de
que nada ali terminaria.
A pista era azul.
Tudo era azul.
A música dizia que aquele cara vivia
num mundo azul, e de alguma forma Caio sentia que era verdade — porque ser
jovem era justamente isso: acreditar que o mundo se curva ao teu tom.
Era por duas ou três horas, se
curvava mesmo.
Mas lá fora, o asfalto continuava
cinza, os pais continuavam envelhecendo, os boletos ainda esperavam.
Num dos cantos da pista, dois
garotos discutiam algo sobre drogas — não sabiam se era MD, bala, ou só
aspirina com açúcar.
A vida ainda era um campo de teste,
e o perigo tinha gosto de aventura e não de consequência.
Ninguém ali acreditava que a morte
podia passar perto — a não ser como lenda contada por mães histéricas.
Caio olhou para o alto, onde um
globo de espelhos girava lento, refletindo a imagem dele em fragmentos.
Por um segundo, sentiu uma vertigem estranha:
como se aquilo tudo fosse um sonho que alguém mais estava tendo.
Um adulto, talvez. Um velho. Ou o
próprio ele, lembrando de um tempo que jurava nunca esquecer.
Mas então a batida recomeçou.
Da
ba dee da ba daa…
E ele voltou a dançar.
O corpo respondia sem perguntar. Ana
voltou a segurar sua mão, como se aquilo fosse um pacto não verbal — "fique aqui comigo, mesmo que a noite
não dure."
Era estranho: quanto mais intensos
os momentos, mais frágeis pareciam ser. Como
se tudo fosse feito de luz.
Como se a alegria dependesse de
nunca ser analisada demais.
O som era uma espécie de hipnose —
libertadora e alienante — e cada música parecia um último capítulo que se
repetia sem fim.
A inocência não estava apenas na
idade, mas no olhar: eles não sabiam que aquela era a última era sem tela.
Que um dia dançariam em frente a
câmeras, sob algoritmos, sob vigilância.
Eles dançavam porque ninguém os
assistia.
Dançavam porque eram livres de si
mesmos.
No banheiro, alguém chorava
encostado à pia, repetindo "ele foi
embora", como se aos dezessete fosse possível saber o que isso
significa.
Uma amiga tentava consolar,
segurando o cabelo e a dignidade alheia.
Mesmo a dor ali tinha algo infantil,
puro — uma dor de quem ainda acredita que tudo tem conserto se for antes das
cinco da manhã.
E Caio dançava.
Dançava porque não sabia o que mais
fazer com aquele corpo estranho, com aquela juventude líquida, com aquela
certeza insana de que o tempo nunca os tocaria. Dançava porque acreditava — como todos ali — que havia
algo de eterno no agora.
Dançava azul.
Inteiro azul.
Como se fosse possível viver ali
para sempre, congelado naquela batida eletrônica e em olhares borrados de rímel
e desejo provisório.
E, talvez, fosse mesmo possível.
Por alguns minutos, foi.
Até que as luzes acenderam, e o
mundo, cruel como sempre, voltou a ter cor demais.
A juventude é o único delírio
coletivo que todos aceitam sem questionar — até que passa.
Houve um tempo em que acreditamos
ser eternos porque não sabíamos nomear a efemeridade.
Acreditamos que o corpo jovial era para sempre, que os amigos durariam mais
que os verões, que o amor, mesmo os mal ensaiados nos corredores da madrugada,
tinham o tamanho da eternidade.
E talvez tivessem mesmo — mas apenas
ali, naquela dimensão paralela entre o neon e o suor, onde o tempo não entra.
A canção dizia “I’m blue” e, no fundo, todos sabíamos que era verdade.
Não o azul da melancolia, ainda.
Mas o azul da ilusão.
Um azul que não dói enquanto não se
percebe.
E então crescemos.
As danceterias viraram igrejas,
depois supermercados ou ruínas.
Os flyers de festas agora dormem em
caixas mofadas, e os amigos viraram nomes em redes sociais que não se falam
mais.
O globo de espelhos se quebrou em
algum ferro-velho, e a música — aquela música — ainda toca, mas ninguém dança
igual.
O maior truque do tempo é não dizer
quando está passando.
Ele finge ser cúmplice e depois
desaparece, deixando apenas a pergunta que ninguém quer fazer: e se aquela
noite tiver sido a última vez em que realmente fomos livres?
Caio talvez ainda ouça aquela batida
ao fechar os olhos no trânsito.
Ana talvez tenha virado mãe, esposa
ou lenda.
E a pista? A pista agora é lembrança
— como quase tudo.
Porque tudo era ensaio.
Tudo era dança.
E tudo passou.
Mas naquela noite, naquela música,
naquele azul — fomos de verdade.
E isso, talvez, seja o mais próximo
que chegamos da eternidade.
Anos depois, Caio atravessaria
aquela rua com o filho nos ombros.
A antiga NeoLight era agora um
estacionamento automatizado, sem atendentes. A
placa enferrujada ainda guardava uma sombra do neon antigo, como um cadáver de
cor.
O menino perguntou se ali já tinha
sido um prédio bonito. Caio disse “mais ou menos” e seguiu andando.
Naquela noite — a última da NeoLight
antes da demolição — havia um cheiro diferente no ar.
Não era só suor e desodorante
vencido.
Era o cheiro de alguma coisa acabando.
Mas nenhum deles sabia nomear.
A juventude, como a dança, é feita
do que não se diz.
Ana o puxou pela mão de novo, mas
agora seus olhos estavam abertos.
Havia algo neles que parecia
perceber a fragilidade do momento.
Ela perguntou: “Você acha que vai
lembrar disso um dia?” Ele riu e respondeu “Sempre”.
Acreditavam nisso como se fosse uma oração.
Mas não lembraria.
Lembraria de pedaços: da camisa dela
grudada pela umidade, do copo caindo no chão e do som abafado dos seguranças
brigando com um garoto que desmaiou. Lembraria
da luz azul cortando o rosto dela em dois, como se metade fosse real e a outra
metade só acontecesse dentro da música.
Lembraria da sensação de estar vivo como um
fogo breve — não do que exatamente queimava.
Do lado de fora, um garoto vomitava
atrás de um muro.
Outro dizia que era amor.
Outro ainda tentava pegar sinal do
celular para fingir que tinha algo importante fora dali.
Nenhum deles entendia, mas todos sabiam: algo
estava terminando.
A última música tocou — Blue, de
novo, como sempre — e o DJ não falou nada. Simplesmente
deixou o som morrer e acendeu as luzes sem cerimônia.
Aqueles corpos, antes mágicos sob o
estrobo, pareciam agora deslocados, ridículos, frágeis.
A realidade volta assim: devagar,
mas sempre.
Ana soltou sua mão. Disse “tchau”
sem beijo.
E Caio não pediu explicação. Nenhuma história
termina como a gente queria, só como dá.
Às vezes, nem termina — apenas se
desmancha no tempo como perfume fraco em roupa suada.
Na semana seguinte, ele voltou
sozinho ao prédio. Era tarde.
O segurança o deixou entrar por pena
ou desatenção. A pista estava escura, cheirava a mofo e promessas mal
cumpridas.
Não havia música, só o eco dos pés no chão de
cimento rachado.
Onde antes se dançava, agora havia
silêncio — e, paradoxalmente, mais verdades silenciadas.
Caio parou no centro da pista.
Olhou para cima.
O globo de espelhos ainda estava lá,
parado, empoeirado, cego. Não refletia mais nada.
E pela primeira vez, ele entendeu o
que era crescer: perder o reflexo.
Fechou os olhos.
Tentou escutar a batida antiga em
sua cabeça. Tentou lembrar do rosto de Ana, do seu gosto no meio da música.
Não conseguiu. Era como tentar
dançar com as próprias lembranças — e perceber que elas já estão dançando com
outra pessoa.
Talvez a juventude não acabe.
Talvez apenas mude de pista.
Talvez os velhos que não escutam
mais música também estejam dançando, só que de um jeito que a gente não entende
ainda.
Ou talvez não.
Talvez seja só isso: uma festa, um
som, um corpo e depois o silêncio.
Caio saiu do prédio sem olhar pra
trás.
No retrovisor do carro, a fachada
azul refletiu por um segundo.
Depois, sumiu.
Como tudo.
Possui graduação em Licenciatura em História pelo Centro Universitário Central Paulista (2005) - Unicep - São Carlos - SP, graduação em Filosofia pelo Centro Universitário Claretiano (2016) - Ceuclar - Campus de São José do Rio Preto – SP, Técnico em Comércio Exterior pelas Faculdades Eficaz, e atualmente cursa Serviços Jurídicos e Notoriais na Unimar. Escrevo regularmente para o site www.recantodasletras.com.br usando o pseudônimo ZACCAZ, mesclando poesia surrealista, com haikais e aldravias..Formado Especialista em Medina y Arte com ênfase em Gilles Deleuze e Equizoanálise onde é também pesquisador do Centro de Medicina y Arte de Rosário – Argentina, sendo o primeiro brasileiro a atuas nesse centro de pesquisa. Especialista em Ensino pela Ufscar, especialista em Psicopedagogia Institucional pela Fundepe – Unesp, Especialista em História da África pela Faculdade de Minas Gerais.
· Email: claytonalexandrezocarato@yahoo.com.br
· Instagram: Clayton.Zocarato
· Facebook: https://www.facebook.com/clayton.zocarato/
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