Imortalidade Jovial do Amor - por Clayton Zocarato

 
 

            Imortalidade Jovial do Amor

 

            Rubens estava ali, no meio daquela sala de aula cinza, onde o som dos cadernos se misturava com o barulho distante da rua abafada pela chuva fina de abril de 1997

            O mundo dele cabia numa carteira de madeira e tinta descascada, um coração desenhado à caneta azul, atravessado por uma flecha torta — talvez a única coisa que ele tivesse certeza naquele momento.

            Lá fora, o rádio da escola tocava alguma balada esquecida, mas Rubens só conseguia pensar nela: Miriam.

            Ela chegou como um estalo no silêncio da rotina da escola pública do subúrbio, com seu jeito meio desajeitado, jeans puído, mochila cheia de bottons e fitas K7 grudadas em cada canto, cada uma guardando histórias, segredos e músicas que ninguém mais ouvia.

            Miriam não era dessas que precisam se explicar.

            Ela carregava um universo inteiro dentro dos olhos castanhos, um brilho meio tímido, meio desafiador.

            No primeiro dia em que sentou ao lado dele, Rubens ouviu as palavras que pareciam vir do fundo de uma canção antiga, ainda que ela nem soubesse disso:

— Tu curte música triste?

            Ele hesitou, meio sem jeito, mas o sorriso escapou.

            Porque no fundo, ele também gostava — dessas músicas que falam de amores eternos, perdas que ninguém explica, promessas que o tempo não apaga.

            Foi ali que tudo começou. Não em um beijo, não numa declaração, mas num olhar que ficou suspenso no ar, se confundindo com as letras daquela fita que Miriam colocou para tocar num walkman surrado.

“So this is who I am... and this is all I know...”



            Rubens sentiu essas palavras como um recado direto para sua alma inquieta.

            Ele não sabia direito quem era ainda, mas já sabia que o que sentia por Miriam era algo que nenhum livro, nenhuma aula, nenhuma regra poderia explicar.

            Durante as semanas que se seguiram, eles foram se descobrindo num passeio pelos becos e ruas de paralelepípedo, entre as bancas de revista onde os pôsteres de bandas internacionais se misturavam aos dos ídolos nacionais.

            Miriam ria alto, provocando os passantes com opiniões afiadas e um sotaque da cidade misturado com um jeito livre de menina que não queria ser só mais uma.

            Rubens, tímido e meio perdido, ia absorvendo cada detalhe, cada gesto, como quem coleciona fósseis de um tempo que logo se tornaria passado.

            Eles conversavam sobre tudo e nada, música, cinema, sonhos — e claro, sobre o mistério do amor.

            Miriam soltava perguntas no ar que Rubens tentava responder com frases feitas, mas sempre sentia que a verdade estava num lugar mais profundo.

            ---Tu acreditas em vidas passadas? — ela perguntou uma tarde, mordendo um drops de anis, e o ar fresco entrava pela janela aberta da sala.

            — Eu acredito que algumas coisas são eternas — ele disse, olhando no fundo dos olhos dela.

            Essa conversa virou promessa, virou música.

            Virou um pacto silencioso entre duas almas que nem sabiam que estavam começando uma jornada para a eternidade, mesmo que a vida ao redor fosse cheia de incertezas.

            Miriam começou a gravar fitas com músicas feitas só para Rubens, aquelas que falavam de despedidas sem fim, de esperas que não tinham prazo.

            Ele as ouvia escondido, no escuro do seu quarto, enquanto o vento batia nas janelas, fazendo sombras dançarem nas paredes.

            E toda vez que a voz dos Bee Gees cantava “I’ll make my journey through eternity...”, Rubens sentia que estava navegando num mar sem fim, onde só aquele amor era a bússola.

            Com o passar dos meses, o amor deles foi se tornando um mundo paralelo — feito de olhares tímidos no corredor da escola, bilhetes trocados escondidos em livros, mãos que quase se tocavam, corações que batiam acelerados sem saber ainda como se dizer.

            Eles não precisavam de palavras, porque o silêncio entre eles falava mais alto.

            Mas o inverno chegou, com suas manhãs frias e cinzentas, e Miriam, sempre com seu sobretudo velho demais, começou a se afastar.

             Um dia, Rubens chegou à escola e ela não estava mais lá.

            O pai dela tinha sido transferido para outra cidade, disseram. Ela partiu sem se despedir, deixando para trás apenas uma caixa com fitas, um perfume de anis e um vazio imenso no peito de Rubens.

            Ele guardou tudo: as fitas, as palavras, os momentos. As fitas foram o único contato que lhe restou, e ele ouvia aquelas músicas com a voz dela sussurrando o refrão que nunca esqueceu:

            “I’ll keep the memory of you and me inside...”

            A ausência se transformou em paisagem, em um espaço onde Rubens aprendeu a conviver com o silêncio e a solidão da espera.

            Ele escrevia cartas que nunca enviava, desenhava asas nas bordas dos papéis, como se pudesse libertar Miriam de onde quer que estivesse.

            A música continuava a tocar dentro dele, mais forte que o tempo, mais resistente que a distância.

            Rubens entendeu que a paixão que viveram era diferente: não era feita de encontros e despedidas comuns, mas de uma chama que queimava sem nunca apagar.             Um amor juvenil, sim, mas imortal.

            Anos depois, ele encontrou aquela velha fita numa caixa esquecida no sótão da casa da mãe.

            O rótulo estava apagado, as marcas do tempo bem visíveis, mas quando ele apertou o play, a última faixa ecoou na sala vazia.

            “We don’t say goodbye...”

            Ele sorriu, com um misto de tristeza e paz.

            Percebeu que o que teve com Miriam nunca foi um adeus.

             Era um amor que existia além do tempo, além das palavras, além do mundo.

            Porque algumas histórias, feitas de olhares e melodias, são eternas.

            Rubens carregava a fita como um relicário.

            Cada vez que apertava o play, era como se Miriam estivesse ali, ao seu lado, sussurrando com a voz suave dos Bee Gees que o amor deles era uma chama que não se apagava.

            Mas a realidade não era tão simples quanto a canção. A vida ficou estranhamente vazia sem ela, e as ruas da vila pareciam menos coloridas, como se o sol tivesse esquecido de brilhar para ele.

            Ele começou a reparar nas pequenas coisas que antes passavam despercebidas: o modo como o vento sacudia as folhas amarelas no chão, as paredes pichadas com mensagens de protesto e esperança, as vozes nas esquinas falando sobre política, economia, sonhos e medos.

             A cidade tinha seus próprios ciclos, seus próprios dramas, e o amor de Rubens, embora intenso e quase sagrado, fazia parte daquele pano de fundo complexo.

            Miriam, por sua vez, estava longe, em outra cidade, outro universo. Ela tinha que se adaptar a uma nova rotina, um novo cotidiano, novos rostos.

            Muitas vezes pensava em Rubens, em suas conversas sobre vidas passadas, músicas e destinos.

            A fita que gravou para ele era o elo invisível que mantinha acesa a chama do que tiveram — um segredo guardado na voz, um conforto contra a saudade.

            Na nova escola, Miriam sentia-se como um barco à deriva, tentando encontrar um porto seguro.

            Os amigos que fez não compreendiam sua obsessão por uma fita antiga, nem o quanto aquela música dos Bee Gees carregava significado. Mas para ela, cada verso era um fio que ligava seu coração ao de Rubens, mesmo que a distância e o silêncio tentassem apagar a chama.

            Enquanto isso, Rubens continuava a vida na vila.

            Os anos passaram e ele descobriu que a adolescência era um tempo de construção e desconstrução, onde o amor se misturava com as dúvidas sobre quem seriam quando crescessem.

            A fita se tornou seu amuleto — um símbolo da imortalidade daquele sentimento.

            Ele começou a escrever poemas, inspirados nas letras da música, que falavam de fogo, luz e eternidade.

             Era sua maneira de manter Miriam viva em palavras, de lutar contra a solidão e o tempo que corria veloz demais.

            Certa tarde, andando pela praça central, Rubens viu um grupo de jovens protestando contra as injustiças que cercavam suas vidas.

             Cartazes feitos à mão, vozes em uníssono, corações pulsando contra o sistema que parecia fechar portas e janelas para eles.

            Naquele momento, Rubens percebeu que seu amor por Miriam não estava separado daquele mundo — era parte do mesmo fogo que queimava na luta, na esperança, no desejo de transformar o futuro.

            Ele entendeu que o amor não é só uma coisa entre duas pessoas. É uma força que atravessa distâncias, gerações e até mesmo o silêncio dos que partiram.

            E então, em meio àquele movimento, ele sussurrou para si mesmo:

            “I’ll make my journey through eternity...”

            Rubens se tornou um jovem mais forte, moldado por suas dores e sonhos, pela lembrança de Miriam e pelo desejo de um mundo melhor.

            E mesmo que o tempo o levasse para longe da vila, ele sabia que aquele amor, aquele momento, nunca deixariam de existir.

            Em outra cidade, Miriam guardava a fita com a mesma reverência.

            Ela também crescia, enfrentava seus próprios fantasmas, construía seu caminho.             Mas a voz do Bee Gees continuava a embalar suas noites solitárias, lembrando-a de que havia algo eterno ali — uma conexão que nenhum espaço podia apagar.

            E no silêncio da noite, entre lágrimas e sorrisos, Miriam repetia para si:

            “We don’t say goodbye...”

            Porque algumas histórias não terminam. Elas se eternizam — imortais, como a música que os uniu.

            O tempo, para Rubens, não passava em vão — ele corria lento nas ruas esburacadas da vila, mas acelerava em seu peito cada vez que ele lembrava dela.

             As tardes de 1997, quando Miriam ainda estava ali, eram feitas de pequenos rituais: o toque na porta do armário ao passar, o recado rabiscado no caderno, a risada solta no corredor, as conversas sobre música, futuro, e o mistério do que viria.

            Era tudo tão intenso que parecia maior que eles. Mas a vida, como sempre, tinha outros planos.

            Quando Miriam partiu, Rubens sentiu o mundo quebrar em pedaços que ele tentava juntar com palavras e canções.

            E foi nesse instante que ele começou a perceber o que a música dos Bee Gees dizia, mas ele só agora entendia de verdade: o amor, o verdadeiro, não é a presença física, nem o toque — é a memória que fica, a chama que não se apaga, o fogo invisível que atravessa o tempo.

            Naquela época, a realidade deles não era feita só de sentimentos doces.

            O Brasil dos anos 90 fervilhava com mudanças sociais, crises econômicas, e uma juventude que buscava voz em meio ao barulho.

            Nas ruas, nas rádios, nas salas de aula, se ouvia o grito por justiça, igualdade e esperança.

            Rubens viu que o amor dele e de Miriam fazia parte daquele grito — um grito silencioso, que não precisava de palavras para ser ouvido.

            Um grito que dizia: “Eu existo, eu sinto, eu quero mais.”

            Os dias passaram, e Rubens, mesmo sem saber onde Miriam estava, manteve a esperança viva dentro do peito.

            Ele sabia que talvez nunca mais a encontrasse, que talvez a vida os levasse por caminhos diferentes.

            Mas havia algo que o mantinha firme: a certeza de que o que viveram era imortal.

            Um dia, já quase no fim da década, quando as fitas K7 começavam a ser substituídas por CDs e o mundo digital espreitava, Rubens recebeu uma carta.

            Era de Miriam.

            Ela escrevia com a mesma sinceridade e intensidade de sempre.

             Contava sobre a nova cidade, os desafios, as amizades, as dores e os sonhos que ainda carregava. E dizia que aquela fita que gravou para ele, aquela música dos Bee Gees, era o maior símbolo do que tinham compartilhado — um amor que ultrapassava o espaço, o tempo e a distância.

            Rubens leu e releu a carta milhares de vezes, sentindo que, apesar de tudo, eles continuavam ligados por algo invisível, algo maior que eles mesmos.

            Numa  tarde de sol, ele colocou a fita no toca-fitas pela última vez, ouviu o refrão uma vez mais, e sorriu.

            “We don’t say goodbye...”

            Ele sabia que não era um adeus, mas um até logo.

            Porque o amor verdadeiro, aquele que nasce entre dois jovens de um tempo difícil, feito de silêncios e melodias, é um fogo que arde para sempre.



            E assim, com o coração cheio de memórias e esperança, Rubens saiu para a rua — para viver, amar e, quem sabe, um dia, reencontrar Miriam.

            Porque enquanto houvesse música e lembrança, nada jamais morreria.



Clayton Alexandre Zocarato

Possui graduação em Licenciatura em História pelo Centro Universitário Central Paulista (2005) - Unicep - São Carlos - SP, graduação em Filosofia pelo Centro Universitário Claretiano (2016) - Ceuclar - Campus de São José do Rio Preto – SP, Técnico em Comércio Exterior pelas Faculdades Eficaz, e atualmente cursa Serviços Jurídicos e Notoriais na Unimar. Escrevo regularmente para o site www.recantodasletras.com.br usando o pseudônimo ZACCAZ, mesclando poesia surrealista, com haikais e aldravias..Formado Especialista em Medina y Arte com ênfase em Gilles Deleuze e Equizoanálise   onde é também  pesquisador do Centro de Medicina y Arte  de Rosário – Argentina, sendo o primeiro brasileiro a atuas nesse centro de pesquisa. Especialista em Ensino pela Ufscar, especialista em Psicopedagogia Institucional pela Fundepe – Unesp, Especialista em História da África pela Faculdade de Minas Gerais.

·                  Email: claytonalexandrezocarato@yahoo.com.br

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