Sonho, sem querer acordar... - de Clayton Zocarato

 

Quase não acreditei nesse sonho.”

— Roupa Nova

 

            Eles se encontraram numa tarde azul, daquelas em que o sol parece feito de fita cassete — quente, mas com um chiado de saudade no fundo.

            Era o ano de 2001.

             O Orkut ainda nem existia, e os celulares flip com antena eram o auge da tecnologia.

            Mas o coração... o coração ainda batia como nos anos 1980.         

            E talvez por isso, tudo parecesse um videoclipe mal editado de uma balada romântica.

            Cris, com seus fones prateados e um All Star rabiscado, gostava de escrever frases no caderno de história.

            Tem um jeito calado, daqueles que ouvem o mundo como quem espera uma música começar no rádio.

            Alex, por outro lado, era pura inquietação: olhos que procuravam o que nem sabiam nomear, dedos que tamborilavam na mesa como quem escrevia canções invisíveis.

            Eles se cruzaram como cenas de um filme que nunca chegou a ser rodado.

             Entre uma troca de olhares na saída da escola e a música Sonho do Roupa Nova, tocando baixinho no Discman emprestado de um amigo, nasceu aquilo que poderia ter sido amor — mas que ficou só no quase.

            Só na ideia.

            Porque naquele tempo, amar era difícil. Não se mandavam áudios, nem se respondia em tempo real. Amar era esperar.

            Era escrever bilhete dobrado como coração e deixar no estojo do outro.

            Era torcer pra ele entender que "Oi, tudo bem?" queria dizer "Fica comigo um pouco?"

            E Alex... Alex nunca entendeu.

            Ou talvez tenha entendido tarde demais.

            Cris esperou.

            Esperou o convite pra andar de bicicleta depois da aula, ou um bilhete amassado com letra apressada dizendo “pensei em você ouvindo aquela música.”         Mas tudo o que chegou foi o silêncio.

            E o silêncio, quando se ama, pesa mais que qualquer palavra dita.

            Os anos passaram como passam os comerciais de rádio — rápidos, meio desajeitados, mas cheios de vinhetas que grudam na memória.

            Cris seguiu. Alex também. Mas de vez em quando, uma música tocava em algum carro parado no semáforo.

            Ou aparecia no rádio da loja de discos em liquidação.                    E os dois paravam.

            Porque o tempo passou, mas a ideia deles dois juntos nunca passou.

            Era como um sonho.

            Um sonho que quase foi real.

            Um sonho que morava nas entrelinhas de uma música antiga.

            Um sonho que ainda doía bonito, como doem as lembranças boas demais pra serem esquecidas.

            Talvez, em algum universo paralelo com internet discada e fitas rebobinadas com caneta Bic, Cris tenha dito o que sentia.

            E Alex tenha respondido.

            E os dois tenham saído de mãos dadas por aí, com o coração batendo na mesma frequência da canção.

            Mas aqui... aqui ficou só a ideia.

            Um amor que viveu inteiro num olhar.

            E morreu sem nunca ter começado.

            Cris se sentava perto da janela, sempre.

            Não pela vista — que era só a rua de sempre, com os mesmos carros e o mesmo senhor do Fusca vermelho — mas porque ali dava pra ver quando Alex passava.

            Às vezes, era só o vulto da mochila nas costas, ou o boné virado pra trás. Mas aquilo bastava pra acender a esperança boba que morava no fundo do peito.

            Esperar virou rotina.

            Esperar a resposta.

            Esperar o olhar.

            Esperar que ele voltasse.

            Porque Alex sempre ia — nunca ficava muito tempo em lugar nenhum.

            Tinha a alma de quem nasceu com a estrada nos pés, mesmo que não soubesse ainda para onde queria ir. E Cris... ah, Cris queria ficar.

            Queria raízes, queria rotina, queria alguém que dissesse “fica aqui só mais um pouco.”

            Mas como se pede isso pra quem já nasceu indo embora?

            Certa vez, Cris escreveu. Não muito. Só umas linhas tortas, no papel quadriculado do caderno de biologia.

            “Às vezes eu penso que a gente daria certo, mesmo sem saber direito como começar.”

            Dobrou o papel com cuidado.

             Fez a dobra do coração — aquela que aprendia-se a fazer na sétima série — e colocou no estojo de Alex quando ninguém via. Achou que era o bastante. Achou que aquilo bastava pra mudar tudo.



            No dia seguinte, o estojo estava vazio. E Alex, calado.

             Nem um sorriso a mais, nem um gesto diferente. Como se o bilhete tivesse virado vento, ou lixo, ou... segredo demais pra ser lido em voz alta.

            Foi naquele dia que Cris soube: talvez o silêncio tivesse vencido.

            Anos depois, numa tarde qualquer de outubro — já com os fones bluetooth e a pressa dos dias modernos — Cris ouviu Sonho de novo.

            A mesma música. A mesma voz. O mesmo refrão que parecia tatuado na memória desde 2001.

            “Foi um sonho... um sonho que passou.”

            De repente, estava de novo naquela sala com cheiro de quadro branco e giz.

            De novo esperando resposta que nunca veio.

             De novo sentindo o coração apertar por algo que nunca teve nome, mas que doía como se tivesse sido tudo.

            E a saudade veio sem pedir licença, como sempre vinha.

            Cris encontrou Alex, muitos anos depois.

             Foi numa cafeteria nova da cidade velha.

             Um acaso.

            Um tropeço do destino, como se o universo tivesse apertado "rewind".

            Alex ainda tinha os mesmos olhos — inquietos, cheios de mundo — mas agora com um ar cansado, de quem finalmente percebeu que fugir de tudo também é uma forma de se perder.

            Trocaram palavras mornas.

            “Como você está?” “Você sumiu.” “Eu vi uma música e lembrei de você.”

            Mas ninguém falou sobre o que não aconteceu.

            Nem sobre o bilhete.

            Nem sobre o amor que só viveu do lado de dentro.

            Talvez porque agora já era tarde.

            Ou talvez porque certos sonhos são bonitos justamente por nunca terem virado realidade.

            Cris saiu da cafeteria com o coração leve, pela primeira vez. Porque às vezes a gente não precisa viver uma história pra ela ser inesquecível.

            Às vezes, só lembrar já é suficiente.

            E algumas músicas, por mais que o tempo passe, continuam sendo trilha sonora de coisas que nunca chegaram a acontecer.

            Amores como o de Cris e Alex não precisam de final.

            Eles vivem ali, entre o verso e o refrão.

            Entre o que quase foi e o que ainda poderia ter sido.

            E quando a música tocar de novo — talvez num carro parado, ou numa playlist esquecida — alguém vai lembrar.

            De Cris.

            De Alex.

            Do sonho.

            Do amor que ficou só na ideia, mas que ninguém nunca conseguiu esquecer.

            O tempo andava como andam os ônibus antigos: fazendo barulho, sacudindo lembranças, parando só quando a gente não quer.

            Cris seguiu a vida, colecionando silêncios, guardando os amores que nunca chegaram a ser ditos.

            Às vezes, pensava em Alex como quem lembra de um filme que não sabe se viu mesmo ou se inventou — uma imagem embaçada pela memória, mas que ainda tinha cheiro, cor, trilha sonora.



            Era sempre um Sonho, tocando ao fundo, como se alguém tivesse deixado a música em loop eterno dentro do peito.

            Aquela melodia que parecia feita pra eles dois — ou pra qualquer um que já tenha amado sem saber como continuar.

            Cris não sabia ao certo quando o amor deixou de doer.

             Talvez tenha sido depois daquele reencontro.

            Talvez tenha sido aos poucos, como uma carta esquecida na gaveta vai perdendo o cheiro da pessoa.

            Só sabia que, um dia, ao ouvir o refrão, o coração já não apertou do mesmo jeito.   Doeu bonito.

             Mas doeu leve.

            Como um abraço que não se deu, mas que ficou guardado no gesto de tentar.

            Alex, por outro lado, seguiu a vida como sempre fez: mudando de lugar, de trabalho, de assunto. Mas nunca daquilo que não disse.

             Porque o que não se diz pesa.

            E mesmo que o mundo insista em seguir, há silêncios que gritam — e ele sabia disso toda vez que via alguém de fones coloridos e camiseta surrada.

            Era como ver um fantasma do que poderia ter sido. Do que quase foi.

            Nenhum dos dois se escreveu depois.

            Nem e-mail, nem SMS, nem um "Oi sumido" perdido nas redes sociais.

            Era como se aquele amor tivesse acontecido num tempo que não aceita replay.             Um tempo que ficou preso nas entrelinhas de um caderno velho, numa música esquecida numa fita K7, num pedaço de adolescência que a vida, apressada, deixou pra trás.

            E talvez seja esse o segredo: tem amores que nascem só pra ensinar.

            Que vêm pra mostrar o quanto a gente é capaz de sentir, mesmo que nunca chegue a viver de verdade.

            Porque viver nem sempre é ter. Às vezes, viver é lembrar. É fechar os olhos e voltar pra aquele momento em que tudo podia ter acontecido — mas não aconteceu.

            Cris, anos depois, ao guardar os discos antigos, achou um bilhete dentro de um caderno.

            Era o que tinha escrito pra Alex, ainda com a dobra em forma de coração.             Sorriu, devagar.

            Não pela lembrança, mas pela certeza de que certas coisas nunca saem da gente.         Nem mesmo com o tempo.

             Nem mesmo com o silêncio.

            Porque um amor, quando é de verdade — mesmo que só na ideia — dura mais que a realidade.

            Dura feito canção boa.

            Daquelas que a gente nunca esquece a letra.



Clayton Alexandre Zocarato

Possui graduação em Licenciatura em História pelo Centro Universitário Central Paulista (2005) - Unicep - São Carlos - SP, graduação em Filosofia pelo Centro Universitário Claretiano (2016) - Ceuclar - Campus de São José do Rio Preto – SP, Técnico em Comércio Exterior pelas Faculdades Eficaz, e atualmente cursa Serviços Jurídicos e Notoriais na Unimar. Escrevo regularmente para o site www.recantodasletras.com.br usando o pseudônimo ZACCAZ, mesclando poesia surrealista, com haikais e aldravias..Formado Especialista em Medina y Arte com ênfase em Gilles Deleuze e Equizoanálise   onde é também  pesquisador do Centro de Medicina y Arte  de Rosário – Argentina, sendo o primeiro brasileiro a atuas nesse centro de pesquisa. Especialista em Ensino pela Ufscar, especialista em Psicopedagogia Institucional pela Fundepe – Unesp, Especialista em História da África pela Faculdade de Minas Gerais.

·                  Email: claytonalexandrezocarato@yahoo.com.br

·                  Instagram: Clayton.Zocarato

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