“Um Pingo de Respeito” - Clayton Alexandre Zocarato

 

“Um Pingo de Respeito”

(Estória criada, tendo como base a canção “A Little Respect” da banda de música pop Inglesa Erasure, de 1988).

 

Era uma daquelas tardes em que o céu parece desabafar junto contigo.

Chovia miúdo, como se o mundo inteiro estivesse chorando sem alarde.

Vicente olhava o asfalto pela janela do quarto apertado, onde o bolor nas paredes fazia mais companhia do que os amores que ele já teve.

Ali, naquela solidão com cheiro de mofo e lembrança, ele se perguntava se o amor era mesmo tudo isso que diziam ou só mais uma ilusão com propaganda bonita.

O rádio chiava baixo no canto da sala, como se murmurasse uma confissão antiga.

 A voz do Erasure preenchia o ambiente como um fantasma que voltava para cobrar contas não pagas.

"I try to discover, a little something to make me sweeter..."

Vicente acendeu o cigarro com a calma dos vencidos.

Os olhos, fundos, sem pressa de mirar o futuro, estavam cravados naquela porta semiaberta — símbolo da partida de Clara.

O chinelo dela ainda encostado no canto.

Uma blusa esquecida na cadeira.

Coisas que dizem “adeus” sem dizer nada.

Dizem que quando alguém vai embora, leva um pedaço da gente.

 Mas Vicente desconfiava que o que Clara levou não foi parte dele — foi o que restava de inteiro.

Clara não era mulher de meias palavras.

 Era mulher de palavras inteiras, afiadas, difíceis de digerir.

Chegava dizendo “eu sou assim, não me muda”, com a firmeza de quem já carregava o próprio cansaço de ser mal interpretada.

 Ela tinha cheiro de cidade grande, passos de mulher decidida e uma tristeza escondida nos olhos que fazia Vicente querer curá-la.

Mas quem ama tentando consertar o outro, só encontra cacos em si mesmo.

— Eu só quero um pingo de respeito, Clara. Um pouco só. — ele disse uma vez, como quem pede troco na padaria e recebe tapa na cara.

Ela riu, não por maldade, mas por não entender. Ou por entender demais.

 

— Respeito, Vicente?

 Tu me queres em jaula. Eu não sou passarinho ou prisioneira. Tu não me amas. Tu queres me moldar.

"Amamos o que desejamos domesticar," pensou ele, lembrando de Nietzsche, aquele que falava do abismo que nos encara de volta.

Clara era abismo — fundo, escuro, fascinante.

E ele se jogou sem pedir corda.

Viviam num ciclo que oscilava entre ternura e abismo.

Beijos que vinham com culpa, abraços que soavam como desculpas.

Vicente queria calmaria, mas amava o furacão.

Ela queria liberdade, mas se perdia nas promessas de colo.

A música ecoava de novo, quase como ironia:

"Give a little respect to me..."

Mas como pedir respeito quando se é o primeiro a se desrespeitar?

Vicente lembrava das vezes que deixou de dizer o que sentia, só pra não incomodar.

Engolia os ciúmes, engolia o medo, engolia até o orgulho.

Acabou indigesto de si mesmo.

Achava que amor era sacrifício.

Que amar era calar pra não perder. Mas amor calado morre sufocado.

Aos poucos, foi se perdendo nela.

Primeiro deixou de ir aos bares. Depois, abandonou os livros.

Depois, os amigos.

E, por fim, abandonou até o próprio espelho — não queria mais ver o homem covarde que estava virando.

“O inferno são os outros”, dizia Sartre.

Mas o inferno mesmo era se reconhecer nos olhos do outro e ver um estranho.

Clara partiu numa manhã nublada.

Sem gritos, sem carta, sem poesia.

Só o silêncio.

Vicente acordou e ela já não estava.

Parecia até que nunca esteve.

Como sonho que se desfaz antes do fim.

Naquele dia, a cidade parecia cúmplice.

O céu se fechou como um funeral de sentimentos.

 A chuva caía sem pressa, como se soubesse que ali dentro havia algo que também escorria.

Agora, Vicente arrastava os dias como quem arrasta corrente.

Trabalhava sem alma, comia sem gosto, dormia sem paz.

Nos olhos, aquele brilho apagado de quem já não espera muito.

Mas havia um grilo que não morria: por que ela foi embora?

Revirou conversas, gestos, silêncios.

Lembrou das promessas quebradas, dos domingos sem palavra, das brigas sobre tudo e nada.

E, no fundo, entendeu: não foi o amor que faltou.

Faltou o respeito. O reconhecimento do outro como um mundo inteiro, não como extensão da nossa carência.

Clara não soube ficar, mas ele também não soube pedir.

Não soube se impor.

Só suplicava por migalhas de afeto, como cachorro abandonado.

"Ninguém ama quem não se ama primeiro", ecoava uma frase lida num papel de bala.

Parecia boba, mas feria mais que filosofia.

Na última cena do dia, ele desliga o rádio.

A voz do Erasure se cala, mas fica no ar.

Vicente acende outro cigarro e olha a cidade lá fora.

Vê um casal se abraçando na rua, apressado, sem guarda-chuva.

— Amar é isso, né? Se molhar junto... — pensa, com amargura.

Mas completa:

— Só que tem gente que já chega com guarda-chuva aberto, com medo de se molhar.

E ele?

Ele se afogou sozinho.

 

Epílogo

Clara mandaria uma mensagem meses depois.

“Espero que você esteja bem”, dizia. Vicente leu e não respondeu.

Pela primeira vez, não por orgulho.

Mas por amor-próprio.

Porque entender que respeito é a base — e não o prêmio — é coisa que só se aprende depois da dor.

E ali, sozinho, ele começou a se reconstruir.

Devagar, como se refaz um templo depois de um terremoto.

Pedra por pedra.

 Gesto por gesto.

Respeito por respeito.

"Amar é dar o que não se tem a alguém que não o quer." — a frase do Lacan rodava na mente dele como disco riscado.

E não era à toa.

Estava ali, moído por dentro, depois que Clara resolveu partir sem aviso, sem bilhete, sem respeito.

"Você podia ao menos ter deixado um café passado", murmurou ele, encarando a xícara vazia sobre a pia, como quem encara um túmulo.

Clara chegou como chegam as tempestades: com promessa de chuva boa, mas levando telhado.

O sorriso dela era aquele tipo de clarão que vem antes do trovão.

Vicente, besta de esperança, achou que podia se salvar no meio da ventania.

No começo, ela dançava pela casa como um raio de sol metido.

Trazia discos antigos, falava de Bowie e Clarice Lispector na mesma frase.

Ele achava aquilo o máximo.

"Ela é luz demais pra esse mundo", dizia ao amigo do bar.

E era mesmo.

Mas luz demais também cega.

Amavam-se como quem tenta consertar relógio com martelo: com vontade, mas sem jeito.

Ela queria liberdade; ele queria abrigo.

Ela falava de respeito, ele achava que amor já bastava.

 A música do Erasure ainda tocava naquele rádio velho:

"I try to discover a little something to make me sweeter..."

("Eu tento descobrir algo pequeno para me tornar mais doce...")

E Vicente tentava.

Tentava calar suas angústias, esconder o ciúme, sorrir quando o coração chorava.

Mas amor sem respeito é como bolo sem fermento: não cresce, não sustenta, não dá gosto.

A vida é essencialmente trágica", dizia Schopenhauer.

E Vicente, que nunca leu Schopenhauer, sentia isso na pele sem precisar de livro.

Porque o que doía mesmo não era Clara ir embora — era ela ter ido sem olhar pra trás.

Sem um “me desculpa”, sem um “fique bem”.

Só silêncio.

Silêncio é coisa que pesa mais que grito.

A cabeça dele virou labirinto.

Tentava entender onde foi que se perdeu.

Talvez tenha sido quando começou a mendigar afeto com olhos de cachorro.

 Ou quando deixou de pedir respeito e aceitou migalha.

 Amor, sem respeito, vira prisão bonita.

 E ele estava preso nela sem perceber.

"Give a little respect... to me"

("Me dê um pouco de respeito...")

Aquela parte da música batia como bofetada.

Era isso que ele nunca teve.

Um pingo de respeito.

Um gesto que dissesse: "Você importa".

Porque no fim, não é o amor que falta.

É o cuidado.

É o toque de quem te olha e não vê só o corpo, mas a alma amassada.

No espelho, Vicente via agora só cacos.

E caco não se cola com mais amor.

Caco só se entende quando aceita que quebrou.

Ele precisava se reconstruir — mas não com ela, nem por ela.

Com um trago de café frio, pensou alto, como quem finalmente aprende:

"Amar não é morrer pelo outro... é viver com a gente mesmo inteiro."



E assim, entre a dor e o desapego, ele abriu a janela.

O mundo ainda chorava, mas ele já não.

Porque entender que não se vive de restos também é uma forma de amor.

E talvez, só talvez, seja isso o tal respeito que ele sempre buscou.


SOBRE O AUTOR

Clayton Alexandre Zocarato

         

Possui graduação em Licenciatura em História pelo Centro Universitário Central Paulista (2005) - Unicep - São
Carlos - SP, graduação em Filosofia pelo Centro Universitário Claretiano (2016) - Ceuclar - Campus de São José do Rio Preto – SP.. Escrevo regularmente para o site www.recantodasletras.com.br usando o pseudônimo ZACCAZ, mesclando poesia surrealista, com haikais e aldravias.. Onheça mais do autor!

·                  Email: claytonalexandrezocarato@yahoo.com.br

·                  Instagram: Clayton.Zocarato


Clayton Alexandre Zocarato faz parte do programa "Escritores de Sucesso" faça parte também deste programa do Jornal e Editora Alecrim.

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