"Não Vá Ainda (Porque Eu Nunca Fui)" (Conto baseado na canção de Zélia Duncan Não Vá Ainda, 1994, dividido em 04 partes e um Epílogo). por Clayton Zocarato
Parte 1
Era
um sábado qualquer de 2003, mas podia muito bem ter sido o último sábado do
mundo.
As
luzes da danceteria piscavam no ritmo incerto da música eletrônica que vazava
por caixas gigantes, misturando batidas com promessas que ninguém realmente
pretendia cumprir.
A
fumaça artificial pairava como um véu sobre os corpos suados, que dançavam com
uma urgência quase teatral — como se aquele momento precisasse ser eterno só
porque ninguém ali sabia o que fazer com o depois.
E
foi ali, entre um refrão de Jota Quest e o arrastar de um All Star vermelho no
chão gasto, que eu vi ela.
Ela — com “e” maiúsculo,
sempre foi.
Não
era musa de revista, nem protagonista de novela das seis, mas tinha um olhar
que lembrava domingos nublados, daqueles em que a gente acorda tarde e ouve
Zélia Duncan no fone, tentando entender se saudade é bicho que se cria ou que
se mata.
Ela
dançava sem olhar pra ninguém, como se o mundo estivesse lá, só pra observar a
liberdade com que os braços dela desenhavam o ar. E eu, naquela época, cheio de
códigos que não sabia decifrar, achei que amar podia ser isso: olhar alguém de
longe e sentir que o coração tava dando
erro 404.
A
gente nunca ficou, nunca se beijou nem trocou DM — que naquela época era só SMS
mesmo, e ainda por cima descontava dos créditos. Mas a gente viveu coisas que
nem aconteceram.
Eu
jurava que o universo inteiro se dobrava só pra gente se esbarrar na fila do
banheiro ou dividir o copo de refrigerante quente, porque as bebidas caras a
gente só via na propaganda.
Vivíamos
nos olhares atravessados, nos “oi”
tímidos com cheiro de perfume doce e timidez. E depois sumíamos, cada um pro
seu canto da cidade — ela de busão, eu a pé, ouvindo um pirata no discman e imaginando como teria sido se a gente
tivesse coragem.
Mas
coragem, naquela época, era artigo de luxo. O que a gente tinha mesmo era
orgulho.
Orgulho
de não mostrar fraqueza, de bancar o desinteressado, de fingir que tanto faz —
mesmo que por dentro a gente estivesse desabando em silêncio.
Ela
sorria pra outro e eu fazia pose de quem também tava “na pista”, mas a verdade é que o coração dançava ao som de
Zélia:
"Não vá ainda... não
vá ainda, não vá..."
E
foi.
Ela
foi.
E
eu fiquei.
Fiquei
com as lembranças de festas que já nem existem mais, com os flyers
guardados na caixa de sapato, com as fotos tremidas tiradas em câmeras digitais
de dois megapixels e o cheiro de fumaça falsa no moletom.
Fiquei
com a sensação de que amei alguém que nunca foi minha, mas que, de algum modo
estranho e bonito, era minha mesmo assim — pelo menos na minha cabeça, naquele
lugar secreto onde os romances acontecem como deveriam ter sido.
A
juventude, afinal, é feita desses amores que não se tocam, mas que ardem por
dentro como pista de dança às duas da manhã.
Hoje,
ela talvez seja mãe, ou more longe, ou nem lembre meu nome. Talvez nem saiba
que foi ela quem me ensinou que o amor mais forte é aquele que a gente nunca
teve coragem de viver.
Mas
sempre que toca Zélia — e toca —, eu paro.
E
penso.
E
repito pra mim mesmo, com um sorriso amargo e o coração meio dançante, meio
quebrado:
"Não vá ainda."
Mas
ela já foi.
E
eu… eu nunca fui.
Parte II
Mas
ela já foi.
E
eu... eu nunca fui.
Não
fui até o final daquela noite.
Saí
mais cedo. Disse que tava cansado, que o som tava ruim, que a galera tava
chata. Era mentira, claro. A real, é que eu não sabia mais segurar aquele
nó na garganta quando ela dançava com outro. Doía. Não uma dor de filme
dramático, com trilha sonora ao fundo, mas aquela dor muda e seca que só a
juventude sabe produzir: a dor de sentir muito sem nunca ter dito nada.
Na
volta pra casa, o céu tava meio cinza, meio laranja, típico de fim de madrugada
de cidade pequena. Eu caminhava sozinho, chutando latinhas e ouvindo a mesma
música em loop no discman que já arranhava os CDs.
"Não vá ainda, não
vá ..."
E
eu me perguntava: será que ela sabia?
Será
que em algum momento, entre um passo de dança e outro gole de refrigerante com Vodka
barata, ela me notou como eu a notei?
Mas
a juventude é um lugar estranho. A gente acha que tem tempo pra tudo. Acha que
se não for hoje, será semana que vem. Que a festa de sábado é só mais uma, e
que aquele olhar trocado vai se repetir. Mas não repete.
Nunca
é igual. Cada sábado é um universo inteiro que desaparece no instante seguinte,
e ninguém avisa.
Ali,
parado na calçada da minha rua, eu entendi uma coisa pela primeira vez: eu
sentia falta de algo que nunca tive.
E
isso, por mais contraditório que pareça, era o sentimento mais real que eu já
havia experimentado.
Parte III
Anos
passaram. As danceterias viraram farmácias, os pôsteres nas paredes deram lugar
às notificações no celular. A gente deixou de gravar CDs pra montar playlists
em silêncio, e as fotos que eram reveladas em papel brilhante agora viraram
arquivos perdidos em nuvens que ninguém revisita.
Mas
ela… ela ficou.
Não
como pessoa — que sumiu da cidade, da rua, da escola, da vida — mas como
presença imaginária.
Ficou
no cheiro de perfume doce que vez ou outra cruzava meu caminho no metrô. Ficou
no fundo de algumas músicas, em frases soltas de conversas, na sensação de que
eu quase vivi algo grande.
Às
vezes, me pegava ensaiando diálogos com ela, mesmo depois de adulto. Num desses
dias cinzas, em que tudo parece meio embaçado, eu me imaginei reencontrando-a.
Ela entrando numa cafeteria qualquer, talvez com o cabelo preso, óculos
escuros, livros debaixo do braço. E eu ali, sentado, tentando parecer
indiferente, mas com o coração batendo como se fosse 2003 de novo.
"Oi",
eu diria.
"Oi",
ela responderia, com um sorriso que eu guardei na memória, mesmo sem saber se
era real.
E
então viria a pergunta que me assombra:
"Por que você nunca
falou nada?"
E
aí... aí eu acordava. Porque essa pergunta sempre doía demais.
A
resposta era simples: orgulho.
Orgulho
besta, adolescente, vaidoso. O tipo de orgulho que faz a gente perder coisas
lindas por medo de parecer vulnerável.
Eu
achei que tinha tempo.
Ela
achou que eu não sentia nada.
E
assim, a gente se desencontrou antes mesmo de se encontrar.
Parte IV
Tem
um lugar na alma onde moram as histórias que não aconteceram. É lá que ela
vive.
Ela
e eu, dançando como se fosse a última festa do verão, sem medo do depois.
Ela
e eu, sentados no banco de trás do ônibus, ouvindo um fone só, dividindo uma
música e um silêncio confortável.
Ela
e eu, escrevendo bilhetes em folhas de fichário, marcando X em “sim” ou “não” e
rindo feito idiotas.
Na
minha cabeça, ela ainda diz:
“Você
dançava meio torto.”
E
eu respondo:
“Mas
era por sua causa.”
E
nessa versão paralela da vida, eu finalmente digo o que nunca tive coragem:
“Fica. Não vai ainda.”
Mas
a realidade sempre volta. E volta crua.
Outro
dia, mexendo num envelope antigo, encontrei uma foto nossa. Não juntos.
Mas
na mesma festa. Eu, num canto da imagem, com a cara de quem não sabe o que
fazer com os sentimentos. Ela, no meio da pista, sorrindo pra alguém que não
era eu. Aquela imagem doeu mais que qualquer beijo perdido: porque ali estava
tudo o que foi, e tudo o que nunca seria.
Epílogo — Quando a
Saudade Vira Parte do Corpo
Hoje,
aos trinta e poucos, entendi que algumas pessoas foram feitas pra morar na
saudade.
Não
pra viver com a gente — mas pra existir eternamente naquela música que toca de
madrugada, naquele cheiro que reaparece do nada, naquela nostalgia que bate sem
pedir licença.
Zélia
ainda canta.
Eu
ainda escuto.
E
quando ela diz, com aquela voz rouca:
“Não vá ainda…”
—
eu penso nela.
E
respondo baixinho, só pra mim:
“Eu nunca fui.”
Possui graduação em Licenciatura em História pelo Centro Universitário Central Paulista (2005) - Unicep - São Carlos - SP, graduação em Filosofia pelo Centro Universitário Claretiano (2016) - Ceuclar - Campus de São José do Rio Preto – SP, Técnico em Comércio Exterior pelas Faculdades Eficaz, e atualmente cursa Serviços Jurídicos e Notoriais na Unimar. Escrevo regularmente para o site www.recantodasletras.com.br usando o pseudônimo ZACCAZ, mesclando poesia surrealista, com haikais e aldravias..Formado Especialista em Medina y Arte com ênfase em Gilles Deleuze e Equizoanálise onde é também pesquisador do Centro de Medicina y Arte de Rosário – Argentina, sendo o primeiro brasileiro a atuas nesse centro de pesquisa. Especialista em Ensino pela Ufscar, especialista em Psicopedagogia Institucional pela Fundepe – Unesp, Especialista em História da África pela Faculdade de Minas Gerais.
· Email: claytonalexandrezocarato@yahoo.com.br
· Instagram: Clayton.Zocarato
· Facebook: https://www.facebook.com/clayton.zocarato/
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