Do It To Me — Um Conto da Saudade - de Clayton Zocarato

 


            Do It To Me — Um Conto da Saudade

 

            Era um sábado qualquer de 1994, mas pra gente todo sábado era o último.

            O céu tava meio alaranjado, com cara de que ia chover, mas ninguém ligava.

            A vida da gente era assim mesmo: meio sol, meio temporal.

            Eu e a Carla sentados no capô do Opala do Fê, que nem nosso era, mas era o único carro que nos levava pros lugares onde a gente fingia ser adulto.

            Ela puxou o cigarro da boca e soprou a fumaça na minha cara. “Tá com medo de mim, ou com medo do que cê sente?”, ela disse, sem tirar os olhos da rua.

            Dei risada, mas por dentro eu tremia.

            Carla era dessas que olhava dentro da gente e arrancava verdade sem anestesia.             “Cê fala como se soubesse tudo”, eu respondi, só pra não ficar calado, porque ali, diante dela, toda palavra minha parecia ensaiada demais.

            A Carla, com aquele cabelo preso de qualquer jeito, camiseta do Faith No More cortada na tesoura e o jeito de quem já tinha visto o mundo acabar e voltar a girar. E eu?      Eu era só um moleque querendo sentir alguma coisa que durasse mais que uma noite.

            “Olha, eu não sou dessas que promete amor eterno, mas se cê me deixar entrar, eu viro poesia no seu caos”, ela falou, agora me olhando direto, sem filtro.

             A música que tocava no radinho do carro era Lionel Richie, aquele som que fazia o coração da gente bater em câmera lenta. “Do it to me one more time…” Aquele refrão parecia falar por mim. Tipo: me deixa te amar do meu jeito torto, uma última vez que valha por todas.

            A gente vivia num tempo em que amar era quase um protesto.

            A cidade nos queria engolir com seus empregos ruins, boletos vencidos, futuro apertado.

             Mas a gente preferia ficar ali, naquele limbo entre a adolescência e o que quer que viesse depois.

             Ninguém queria crescer. Crescer era aceitar as regras.

            E Carla era a exceção de todas elas.

            “Você tem medo de mim porque eu não deixo você fugir”, ela sussurrou, encostando a testa na minha. E era verdade.

            Com ela, não dava pra fazer o jogo do ‘tô nem aí’. A gente se beijou como se fosse a primeira vez.

             Aquele beijo lento, molhado, cheio de silêncio entre uma respiração e outra. Era beijo com gosto de verdade, beijo de quem se entrega mesmo sem saber onde vai parar.

            Depois a gente riu. A gente sempre ria depois de se amar. Carla dizia que transar com riso era sinal de leveza.

            E leveza, pra ela, era luxo. A gente não tinha grana, nem futuro certo, mas tinha esse momento — esse agora — que era só nosso.

            Na volta pra casa, ela deitou no banco de trás, pés pra fora da janela, cabelo bagunçado, e cantava baixinho o refrão do Richie. “Do it to me one more time…” Eu dirigia devagar, como quem não queria chegar nunca.

            O silêncio entre nós não era falta de assunto. Era cheio de significados que a gente preferia não traduzir.

            Carla dormia sorrindo.

            E eu? Eu só pensava: como é que alguém pode ser casa e incêndio ao mesmo tempo?

            Os dias passaram como passam os verões bons demais pra durar. A Carla sumiu numa terça.

            Não deixou bilhete, nem telefone. Só um vinil arranhado com o disco do Lionel Richie em cima da minha cama.

            Quando coloquei pra tocar, “Do It To Me” começou a tocar com aqueles chiados de fita antiga, e eu quase chorei.

            Não porque ela tinha ido, mas porque tinha me feito sentir. Sentir tudo. Medo, desejo, saudade, entrega.

            E olha que eu achava que era só mais um rolo de verão.

            Hoje, às vezes, eu passo na frente daquele posto onde o Opala costumava parar.             Não tem mais o carro, nem o rádio, nem a gente. Mas se eu fecho o olho, consigo ouvir a risada da Carla e aquele refrão rodando em loop na minha cabeça.

            E penso: alguns amores não são pra durar — são pra despertar. Ela me fez querer viver de verdade. E isso, porra… isso já foi amor pra caralho.

            E foi assim que a Carla sumiu da minha vida: sem alarde, sem drama, como quem só levanta da mesa do bar antes do último gole.

            Mas deixou a alma dela nos meus bolsos, feito isqueiro esquecido, perfume na camiseta e umas frases que martelavam na minha cabeça como mantra.

            Na primeira semana, eu ainda achava que ela ia voltar.

            Toda vez que a campainha tocava, meu coração fazia aquele barulho de latido engasgado, tipo cachorro de rua esperando dono. Mas nunca era ela. Era só o carteiro, ou a vizinha fofoqueira, ou o silêncio tentando me convencer de que aquilo tudo foi um sonho.

            Voltei a andar pelos mesmos lugares.

             A pracinha do Largo, o boteco do Zé, com cerveja quente e sinuca torta, os muros pichados com frases que pareciam terem sido escritas por ela. Em um deles li:

            “A gente fode o mundo tentando amar direito.”


            Tive certeza: aquilo era a cara dela.

            Comecei a ouvir o disco do Lionel quase todo dia. Aquela faixa... “Do it to me one more time” ... parecia rir da minha cara, me lembrando que o amor, quando é verdadeiro, nunca sai de fininho.

             Ele fica. Nem que seja só pra doer.

            No segundo mês, eu tentei sair com outras meninas. Tentei rir das mesmas piadas, fazer os mesmos caminhos.

            Mas tudo soava ilusão, como dublagem mal feita de um filme que eu já tinha decorado.

            Nenhuma tinha a urgência da Carla, aquele olhar de quem viveu três vidas antes dos vinte e três.

            Nenhuma me fazia querer sumir do mundo só pra ficar trancado num quarto ouvindo a respiração dela dormir.

            Teve uma noite que eu sonhei com ela.

            Sonho vívido, daqueles com cheiro, toque, cor.

            Ela me puxava pela gola da camiseta e dizia: “Cê tá perdendo tempo tentando me esquecer. Me amar era tua única chance de se salvar.”

            Acordei suado, com os olhos ardendo, e com o coração berrando igual motor fundido.

            Foi aí que eu saquei: tem gente que entra na nossa vida não pra ficar, mas pra acender. E ela me acendeu. Fogo, luz, caos.

            Depois deixou o rastro e foi embora, tipo estrela cadente que ninguém vê duas vezes.

            Um dia, no fim de setembro, resolvi pegar a estrada. O Opala do Fê ainda tava lá, largado no quintal de casa tirando suas férias de abandono, com cheiro de mofo e ferrugem no para-choque.  “Vou dar uma volta, lembrar de umas coisas,” pensei comigo.

            Peguei a estrada velha, aquela que levava pro sítio onde a gente passou um fim de semana em julho, num frio medonho, dormindo em colchão inflável furado, bebendo vinho barato e ouvindo fita no toca-fitas portátil.

            Lá, ela me disse pela primeira vez que tinha medo de não sentir nada. Eu disse que meu medo era sentir demais.

            Na beira da estrada tinha um posto abandonado, com placa caída e bomba de gasolina enferrujada.

            Estacionei ali. Acendi um cigarro, mesmo sem fumar há semanas.

            O céu tava sujo, meio cinza, mas bonito de um jeito estranho.

            E foi ali que eu vi um carro parar. Um Chevette marrom, vidro trincado e uma música tocando baixinho — adivinha qual?

            Ela desceu.

            Não era sonho. Nem miragem. Carla tava ali, de novo, como se nunca tivesse ido embora.

            Mesma cara de deboche, mas o olhar... o olhar tava mais cansado.

            Como se o mundo tivesse tentado apagar o que ela era, mas falhado por pouco.

            “Sabia que cê ia me achar se ouvisse com o coração”, ela falou, encostando no carro.

            “Cê sempre teve vocação pra frase de filme ruim, né?”, respondi, só pra não chorar.

            Ela riu. Aquele riso que fazia o mundo se perdoar por ser tão cruel.

            “Fugi. Me perdi.

             Me joguei em umas ciladas.

            Mas em nenhum lugar eu fui mais eu do que naquele capô contigo, ouvindo Richie.”

            Ficamos ali parados, só se olhando. E foi ela que veio, como sempre.

            Me abraçou apertado. Apertado tipo pedido de desculpa sem palavras. E eu abracei de volta, sem prometer nada, mas sentindo tudo.

            A gente passou a noite ali, no banco do carro, dividindo uma catuaba quente e as memórias.

             Ela contou das cidades por onde passou, dos caras errados, das promessas furadas. Eu falei de como tentei seguir, de como todo mundo parecia “quase”.

            E então, como se os deuses dos amores mal resolvidos conspirassem, começou a chover. E não foi garoa, não.

            Foi temporal daqueles que lavam até a alma. Carla me puxou pelo colarinho, como da primeira vez, e disse: “Me beija, antes que a gente vire lembrança de novo.”

            E a gente se beijou.

            Beijo de reencontro.

            Beijo de mil despedidas. Beijo que pergunta: "por que caralhos cê demorou tanto?"

            Dessa vez, a gente não transou.

            Dormimos juntos, colados, com o barulho da chuva batendo no vidro, como trilha sonora de um filme que ninguém escreveu.

             Dormimos como dois sobreviventes que se encontram depois da guerra.

            De manhã, o sol voltou.

            Carla me olhou e falou: “Não sei quanto tempo eu fico.

            Mas sei que, enquanto eu tiver aqui, vai ser inteiro.”

            Eu respondi: “Enquanto cê tiver aqui, eu vivo. Depois... depois eu escrevo.”

            Ela sorriu. E pela primeira vez, o sorriso dela não escondia dor.

            Voltei com ela pra cidade.

            Mas a gente não voltou pro mesmo lugar.

            Alugamos um apê minúsculo, com vazamento no banheiro e vista pro nada.

            Mas ali tinha tudo: nossas roupas emboladas, o vinil do Richie rodando arranhado, e os dias que não precisavam de explicação.

            A Carla arrumou um trampo vendendo brinco na feirinha da Praça Roosevelt.

            Eu tocava uns sons num bar ali perto, coisa simples, só pra não endoidar.

            A gente brigava por besteira, fazia as pazes com beijo, e aprendia a arte difícil de permanecer.

            Um dia, numa tarde quente de dezembro, ela chegou em casa com um envelope amassado. Tinha sido chamada pra uma bolsa de fotografia em outro estado.

             Um curso que ela nem lembrava mais que tinha se inscrito. A cara dela.

            Ela me olhou, séria. “Eu vou!”

            Engoli seco. “Eu sei!”

            “Cê vai me esperar?”

            “Não.”



            Ela pareceu surpresa. Mas antes que dissesse algo, completei: “Eu não vou esperar. Eu vou lembrar.

            Vou te guardar como se guarda incêndio engarrafado. E se um dia cê voltar... a gente continua da onde parou.

            Se não voltar... foi tudo de verdade, né?”

            Ela sorriu. “Foi. Sempre foi.”

            No dia que ela foi embora, não teve cena.

            Não teve lágrima. Só um beijo demorado e a música do Lionel de fundo.

            E eu ali, na janela, com o coração aberto e o peito leve — não por não doer, mas por ter sido intenso.

            Hoje, escrevo essas linhas com a fita do Richie tocando atrás, ainda arranhada.             Ainda viva.

            Alguns amores são como música boa: mesmo quando acabam, continuam tocando dentro da gente.

            E a Carla... ah, a Carla foi minha canção mais bonita.


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