Quando o mundo girava em fita - Por Clayton Zocarato
Era
tipo 1994, eu acho. As datas se misturavam porque naquela época o tempo era
meio elástico — a gente media os dias em fitas rebobinadas e tardes que não
acabavam nunca. Eu lembro de quando o som da rua era um misto de risadas, skate
raspando o asfalto, e as batidas eletrônicas que vazavam de um rádio portátil,
meio chiado, tocando Erasure. “Give a
little respect... to me”, cantava o Andy Bell com aquela voz que parecia
pedir desculpa e, ao mesmo tempo, gritar esperança.
A
gente não falava em amor de um jeito sério, sabe? Era tipo “tô a fim”, “rola ou não rola”, “vamo ver no que dá”. Mas dentro
daquelas palavras rasas tinha uma fome imensa de ser notado, de ser respeitado,
de não virar só mais um rosto na multidão do colégio ou da pracinha. Eu, o
Vinícius, a Carol, o Guga e a Tati éramos um grupo improvável, meio alterna, meio sonhador, e 100%
bagunçado. O mundo não exigia muito da gente, mas, ao mesmo tempo, parecia
cobrar tudo.
A
Carol era diferente. Ela usava uma jaqueta jeans com patches costurados à mão,
o cabelo desfiado que pegava o vento como se fosse cena de videoclipe. Tinha
algo nos olhos dela que era mais antigo do que a gente conseguia entender. Eu
gostava dela, mas não sabia dizer se era amor, crush, ou só aquele tipo de admiração besta que a gente sente por
quem parece entender o que você ainda nem aprendeu a perguntar.
Foi
numa tarde dessas, fim de verão, que ela apareceu com um walkman cor-de-rosa e
me ofereceu um fone. “Ouve isso”, ela disse. Tocava A Little Respect. A voz
invadiu meu ouvido como se abrisse um portão invisível. “And if I should falter, would you open your arms out
to me?” Eu
não sabia inglês direito, mas sentia. Senti tudo. A vontade de pedir respeito,
de ser enxergado, de ser amado por inteiro, sem ter que se desmontar pra caber
em alguém.
Nos
anos 90, a gente ainda acreditava em recomeços simples — tipo escrever uma
carta, gravar uma fita, mandar um bilhete escondido no estojo. Mas a Carol
sumiu por um tempo. Ou melhor, se afastou. Disse que precisava “pensar na
vida”. Tinha uns dramas em casa, a mãe meio ausente, o pai sempre viajando, e
ela se sentia vazia mesmo cercada de gente. Eu tentei mandar recado por todo
mundo, mas ela virou um fantasma. Fiquei ouvindo aquela música no repeat, até o som da fita começar a
chiar. Era como se o chiado fosse
o eco do que não foi dito.
Quando
ela voltou, parecia outra. O olhar ainda bonito, mas mais distante. Me contou
que tinha começado a ler umas coisas — Foucault, Baudrillard, uns nomes que pra
mim soavam como bandas francesas. Ela falava sobre o “mundo líquido” que ainda nem tinha nome na boca do Bauman, sobre
como tudo era efêmero, sobre o amor como performance social. Eu fingia
entender, mas o que eu realmente sentia era saudade do jeito que ela ria antes,
sem peso nenhum.
Um
dia, na pracinha, rolou aquele papo torto sobre segunda chance. Eu tinha
deixado escapar, tipo: “Será que dá pra
começar de novo?”. Ela me olhou, meio triste, meio esperançosa. Disse que
queria tentar, mas que não sabia se o amor ainda era possível do jeito antigo —
aquele das fitas cassete, das músicas gravadas com barulho de fundo, das cartas
dobradas em quatro. A gente se beijou. E foi como rebobinar um filme e perceber
que ele não tem o mesmo brilho quando você já sabe o final.
O
namoro durou o que tinha que durar. Uns meses intensos, cheios de noites no
telefone discado, confissões em bancos de praça, e silêncios cheios de
promessas. Mas o mundo já tava mudando. Chegava internet de escada, os
primeiros e-mails, ICQ, e aquela sensação de que tudo ia ficar mais fácil —
quando, na real, tudo só ficou mais confuso.
Quando
terminamos, foi sem drama, mas com aquele vazio que dá quando você percebe que
cresceu. A Carol foi pra faculdade, virou artista visual, e começou a postar
textos sobre o “eu fragmentado” e “a solidão digital”. Eu ainda ficava
preso nos velhos hábitos — rebobinava fitas, escutava Erasure, e tentava
entender onde é que a gente se perdeu.
Anos
depois, quando o mundo já girava em HD e os likes viraram o novo “te amo”, encontrei ela numa exposição
no centro. Tava diferente, mas ainda tinha aquele brilho calmo. Falamos como
quem remexe um baú cheio de cartas que não teve coragem de rasgar. Rimos de
como tudo parecia mais simples quando a gente achava que bastava dar um pouco
de respeito pra ser feliz.
Ela
me contou que a música A Little Respect
ainda fazia parte das instalações dela, como trilha de uma performance sobre
vulnerabilidade. Eu disse que ainda tinha a fita — mesmo gasta, mesmo sem som
direito. Ela sorriu. “A inocência não
volta, mas o sentimento fica”, ela disse.
Naquele
instante, percebi que o que a gente viveu não foi só amor adolescente. Foi o
reflexo de uma época em que a gente ainda acreditava em conexões que não
precisavam de wi-fi, em palavras que demoravam a chegar, mas chegavam cheias de
verdade. A pós-modernidade podia até
dizer que tudo é líquido, que nada é fixo — mas a lembrança daquele som
chiado, do toque do fone dividido, era sólida como um vinil.
Saí
de lá com uma leveza estranha. A música tocava na minha cabeça de novo, só que
agora parecia uma conversa entre o passado e o presente. “And if I should falter, would you open your arms out
to me?” — e eu respondi
mentalmente: abriria, sim. Pra Carol, pra mim, pra tudo que
ficou inacabado.
No
fundo, acho que é isso que a gente busca até hoje — um pouco de respeito, um
pouco de verdade, um pouco de pausa num mundo que vive apertando o “fast forward”.
Se
eu pudesse voltar no tempo, rebobinar aquele verão de 1994, faria tudo igual.
Só deixaria o som tocar mais alto.
Era
o último verão antes de tudo começar a mudar — antes dos celulares, da internet
discada, das responsabilidades que a gente nem imaginava. A gente vivia de mixtapes gravadas da rádio, de fitas VHS
com filmes meio embolorados, de tardes infinitas na calçada, ouvindo o som sair
das caixas do carro do Marcelo — um Gol quadrado vinho, que era o orgulho
dele e o palco de todos os nossos sonhos.
As
meninas usavam shorts jeans desbotados e camisetas do Nirvana, os meninos
andavam com o cabelo molhado de gel, tentando imitar o vocalista do Legião. E o tempo parecia elástico — o
sol demorava uma eternidade pra cair, e a gente acreditava que aquilo nunca ia
acabar.
A
cidade tinha cheiro de maresia e gasolina. A praça era o ponto de encontro, o
orelhão o nosso WhatsApp, e cada ligação feita com ficha era uma aposta: será
que vai dar pra dizer tudo antes de cair a linha?
Naquela
época, o amor era analógico. A gente escrevia bilhetes dobrados em triângulo,
deixava escondido no estojo da escola. Esperava o recreio pra ver o olhar do
outro lado e tentar decifrar se tinha entendido o recado.
Lembro
do dia em que tudo parou. Era uma tarde quente de janeiro, o rádio tocava
Always do Bon Jovi, e a gente estava deitado na grama, falando sobre o futuro —
faculdade, viagens, “um dia ter um som
melhor que aquele”. A fita acabou com um estalo seco, e o silêncio que
ficou parecia dizer mais do que qualquer música.
Nunca
rebobinamos aquela fita. O tempo passou, levou cada um pra um canto, e as vozes
daquelas tardes foram se perdendo no barulho dos anos.
Mas
às vezes, quando escuto o chiado de um vinil velho, volto pra lá.
Vejo
o Marcelo encostado no carro, a Tati rindo com o cabelo no vento, e sinto o
calor da rua subindo pelos pés.
E
penso: se pudesse rebobinar aquele verão de 1994, faria tudo igual. Só deixaria
o som tocar mais alto.
Foi num domingo de outono que o acaso resolveu
apertar o play de novo.
Eu estava dirigindo pela estrada velha, o
rádio no modo aleatório, quando começou a tocar clássicos do Pop – Rock dos 80
e 90.
Trinta anos depois, e as mesmas músicas
ainda sabiam onde me encontrar. Peguei a saída pra cidade quase sem pensar. A
placa enferrujada, a mesma curva antes da ponte, o mesmo cheiro de eucalipto no
ar. Era como se o tempo tivesse feito uma pausa, esperando a gente voltar pra
terminar a conversa.
A
praça estava menor — ou talvez eu é que tivesse crescido demais. O orelhão não
existia mais, mas o bar do seu Nilo continuava lá, agora com uma TV de tela
plana no canto e fotos antigas na parede.
“Você
é o filho da Dona Cida, não é? O que andava com o pessoal do Gol vinho?”
Assenti, rindo.
“Eles
apareceram por aqui semana passada. Reunião de turma, acho. Falaram que iam se
encontrar na praia.”
E
foi assim que, meio por sorte, meio por destino, encontrei todo mundo outra
vez.
O Marcelo ainda tinha o mesmo sorriso, só
que agora com alguns fios brancos. O Gol? Virou lembrança — mas ele guardava o
emblema do carro pendurado no chaveiro. A Tati estava lá também, com um olhar
tranquilo e a risada igualzinha. Quando me viu, ficou uns segundos em silêncio,
como se tentasse rebobinar tudo o que o tempo apagou.
“Demorou, hein?”, ela disse, servindo
cerveja em copos de plástico, como antigamente.
“Trânsito”, respondi.
“Trinta anos de trânsito.”
A gente riu. E riu muito.
Falamos dos shows, das festas, das fitas
que acabavam no meio da música.
Mas também falamos das perdas, dos filhos,
dos caminhos que não se cruzaram mais.
Quando o sol começou a descer, alguém
colocou um som antigo pra tocar. O mesmo chiado, o mesmo refrão. E por um
instante, o tempo se dobrou. A areia nos pés, o mar refletindo as luzes da
cidade, e nós ali — os mesmos, só que mais cansados e talvez mais sábios.
“Se eu pudesse rebobinar aquele verão de
94…”
Comecei a dizer, e ela completou: “…faria
tudo igual. Só deixaria o som tocar mais alto.”
Dessa vez, a gente deixou.
E dançou até o fim da fita.
Naquela época, o mundo parecia em fita VHS
— bastava apertar o play e deixar rodar. O sol nascia preguiçoso, o vento vinha
do mar com cheiro de sal e liberdade, e a gente acreditava que o tempo era
elástico, que a juventude era uma promessa infinita.
A
gente passava as tardes sentados na calçada, o rádio de pilha equilibrado num
muro quente. O Marcelo sempre aparecia com o Gol quadrado vinho, as caixas de
som tremendo no porta-malas. Ele dizia que aquele carro era o nosso “passaporte
pra qualquer lugar”. E era mesmo. Bastava juntar uns trocados pro combustível,
e lá íamos nós pra estrada, sem destino, só pra ver o sol se pôr de outro
ângulo.
A Tati vinha sempre com a mochila surrada
cheia de fitas cassete. Escrevia os nomes das músicas em caneta Bic azul: “O
Rappa – Pescador de Ilusões”, “Legião – Tempo Perdido”, “Kid Abelha – Grand
‘Hotel”. Quando o som engasgava, ela enfiava o dedo no buraquinho da fita e
rebobinava manualmente, girando com cuidado. Aquele gesto era quase um ritual —
o tempo voltando nas pontas dos dedos.
A gente não sabia nada sobre o futuro, mas
sabia dançar no presente.
As ruas terminavam sempre em areia, e os
fios dos postes pareciam costurar o céu. As noites eram povoadas por luzes
amareladas e risadas. A gente bebia refrigerante morno, dividia batata frita e
ouvia as histórias que o Marcelo contava — sempre exageradas, sempre
encantadoras. Ele dizia que um dia ia viajar pra fora, abrir uma oficina em
Portugal. A Tati dizia que ia estudar Jornalismo e escrever sobre o mundo. Eu
só ouvia, tentando acreditar que todos nós seríamos eternos.
O amor, naquela época, era artesanal.
Ninguém digitava nada; a gente escrevia bilhetes dobrados em triângulo. A folha
perfumada, o grafite borrado de tanto passar a borracha, o coração desenhado no
canto. E quando o bilhete era entregue, o coração batia como se fosse explodir.
O silêncio entre dois olhares dizia mais do que qualquer mensagem.
O verão de 94 terminou com uma tarde de
céu branco, tão quente que a gente mal respirava. O rádio tocava Always, do Bon
Jovi — o refrão arrastado, meloso, exagerado — e a gente deitado na grama,
olhando as nuvens passarem. A fita acabou no meio da música, com aquele estalo
seco que sempre deixava um vazio no ar.
A Tati olhou pra mim e disse:
— Sabe o que é estranho? A gente acha que
vai lembrar de tudo pra sempre. Mas não vai.
Eu ri, sem entender.
— Claro que vai.
— Não, não vai. A gente vai lembrar de
flashes, pedaços, sensações… mas não da vida toda.
Ela estava certa. A fita rebobinou, o
verão passou, e o tempo começou a correr como se tivesse pressa.
Vieram os anos 2000, o trabalho, as
contas, as mudanças. Cada um foi pra um canto. O Marcelo abriu mesmo uma
oficina, mas nunca em Portugal — ficou em Santos. A Tati virou jornalista,
dessas que escrevem sobre política e esquecem de escrever sobre si. E eu… segui
o roteiro que o mundo traçou. Faculdade, emprego, um casamento que durou menos
do que o tempo que eu levei pra entender o amor, mas e a Carol? A Carol em cada
memória e lembrança dos tempos de inocência...
Às vezes, no meio da rotina, eu ouvia uma
música do rádio que me jogava de volta pra 94. Bastava o início de Tempo
Perdido pra que eu sentisse o gosto do sal na boca.
Mas o tempo, esse grande gravador, não
rebobina. Ele só grava por cima, camadas e mais camadas de som, até que o ruído
antigo se perde.
Num
domingo qualquer, peguei a estrada velha pro litoral. O rádio do carro tocava
no modo aleatório.
“Se eu pudesse rebobinar aquele verão de
94?“…faria tudo igual. Só deixaria o som tocar mais alto.”
O sol desceu, o céu virou fita colorida. E
eu entendi: talvez a vida seja mesmo isso — um monte de verões guardados em
algum canto da alma, esperando o momento certo pra tocar de novo.
De volta pra casa, guardei uma concha no
porta-luvas. No rádio, tocava Tempo Perdido.
“Somos
tão jovens”, dizia o refrão.
Sorri, porque percebi que ainda éramos.
Jovens de um outro jeito — com menos
pressa, mais silêncio, mas o mesmo brilho que o verão de 94 deixou aceso.
A fita pode ter gasto, o som pode ter
chiado, mas a música continua.
E se eu pudesse rebobinar aquele verão,
ah, eu faria tudo igual.
Só deixaria o som tocar mais alto.
Possui graduação em Licenciatura em História pelo Centro Universitário Central Paulista (2005) - Unicep - São Carlos - SP, graduação em Filosofia pelo Centro Universitário Claretiano (2016) - Ceuclar - Campus de São José do Rio Preto – SP, Técnico em Comércio Exterior pelas Faculdades Eficaz, e atualmente cursa Serviços Jurídicos e Notoriais na Unimar. Escrevo regularmente para o site www.recantodasletras.com.br usando o pseudônimo ZACCAZ, mesclando poesia surrealista, com haikais e aldravias..Formado Especialista em Medina y Arte com ênfase em Gilles Deleuze e Equizoanálise onde é também pesquisador do Centro de Medicina y Arte de Rosário – Argentina, sendo o primeiro brasileiro a atuas nesse centro de pesquisa. Especialista em Ensino pela Ufscar, especialista em Psicopedagogia Institucional pela Fundepe – Unesp, Especialista em História da África pela Faculdade de Minas Gerais.
· Email: claytonalexandrezocarato@yahoo.com.br
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