QUANDO O SINO TOCOU POR NÓS – ( Conto de Clayton Zocarato baseado na canção “For Whom the Bell Tolls” dos Bee Gees).


                           QUANDO O SINO TOCOU POR NÓS – ( Conto Baseado na canção

“For Whom the Bell Tolls” dos Bee Gees).

           

            Era 1993, e o ginásio municipal de Santo Amaro brilhava sob luzes amarelas de filamento.

            O chão encerado refletia passos tímidos e o eco da esperança juvenil.

             No rádio portátil, uma fita tocava Bee Gees — “For Whom the Bell Tolls” — e parecia que o mundo inteiro cabia naquele refrão.

            Isabela usava um vestido azul-claro, simples como a tarde de sábado. Rafael, com a camisa branca e o cabelo penteado com gel, via nela um universo de mistério e inocência.

            O baile começava, e cada passo era um tratado sobre o amor antes de o amor saber o que era.

            Os dois dançaram de olhos baixos, como quem teme despertar de um sonho.

            A canção falava de um sino que toca por aqueles que amam e perdem, e eles não entendiam bem — mas sentiam.

            A juventude, afinal, é feita do que não se entende e mesmo assim se sente.

             Ali, na penumbra entre o riso dos amigos e o cheiro de refrigerante morno, nascia um tipo de eternidade.

             O tempo ainda não havia se transformado em pressa.

            O amor ainda não precisava de senha.

            Veio 1995, e com ele o telefone fixo, o chiado da linha, o ritual de ligar para saber se o outro estava em casa. Rafael gravava fitas com músicas — Bee Gees, Engenheiros, Roxette — e escrevia bilhetes com canetas coloridas. Isabela respondia com cartas perfumadas, que atravessavam ruas, semanas e distâncias pequenas.

             A tecnologia ainda era um sopro tímido, um fio de mágica que não substituía o toque.

            O tempo tinha cheiro, textura, e o amor, paciência.

            Esperar era um verbo vivo — e cada espera continha o universo inteiro.

            Mas o mundo já começava a se inclinar.

            Nos shoppings, surgiam os primeiros celulares, pesados como promessas.             Rafael viu um e pensou: “um dia talvez eu te ligue de qualquer lugar”.

            Ele não sabia que esse “qualquer lugar” um dia seria também “nenhum lugar”.

            Em 1999, o brilho azul das telas começou a acender janelas invisíveis.

            A internet era lenta, mas encantava.

            O som do dial-up parecia um portal — e era.

            Eles ainda se encontravam, agora menos. O baile tinha virado lembrança, e as vozes se transformavam em letras digitadas.           

            Um “oi” na tela já não carregava o calor de um olhar, mas ainda guardava esperança.



            A música dos Bee Gees continuava viva, tocando em rádios FM que resistiam como fósseis de amor.

            “For whom the bell tolls, it tolls for thee…” — o sino tocava, e ninguém sabia se era por eles ou pelo fim de um tempo.

            O amor, que antes era um gesto, virou um arquivo.

            E os gestos, que antes eram cartas, viraram ícones piscando.

            Em 2003, Rafael trabalhava com computadores.

            Isabela fazia faculdade de letras e colecionava saudades.

             Mandavam e-mails, trocavam fotos em anexos, mas já não sabiam esperar.

            A internet ensinara a pressa — e a pressa matou o mistério.

             Certa noite, Isabela reencontrou a fita antiga.

             Colocou no velho rádio, ouviu o chiado, e o sino dos Bee Gees tocou como uma lembrança que nunca morre.

             Ela chorou — não de tristeza, mas de gratidão.

             Porque havia existido um tempo em que o amor se construía com hesitação, com silêncio, com olhos.

            Rafael, longe dali, viu uma notificação no e-mail: “Nova mensagem não lida”.             Abriu — e era vazia. Talvez fosse o eco de tudo o que não se disse.

            Chegou 2010, e as redes sociais viraram espelhos.

            A solidão passou a usar filtro.          

            Os bailinhos deram lugar a fones de ouvido e playlists automáticas.

            O amor virou “status”, e a saudade virou “visualizado há 5 minutos”.

            As palavras perderam peso, e os encontros perderam corpo.

            Isabela ensinava literatura e falava aos alunos sobre o tempo em que o amor tinha caligrafia.

            Rafael, agora casado com o trabalho, percorria linhas de código e lembrava das linhas da mão dela.

             O sino tocava em silêncio — talvez dentro de cada um.

             O século novo chegou como uma promessa de aproximação, mas entregou o oposto: estamos todos conectados, mas ninguém alcança ninguém.

            Em 2020, a cidade parou — e com ela o barulho do mundo.

            As pessoas voltaram a olhar pelas janelas.

             Alguns descobriram a própria voz no silêncio das telas.

            Isabela reencontrou Rafael por acaso, num reencontro virtual de antigos colegas.            

            Os rostos, agora maduros, traziam o mesmo brilho da adolescência perdida.             Conversaram sobre o passado — sobre o baile, as cartas, as fitas.

             Riram. Choraram um pouco.

            “Você lembra da música?”, perguntou ela.

             Ele sorriu: “Nunca parei de ouvir.”

             Naquela noite, cada um, em sua casa, colocou a canção.

            E enquanto os Bee Gees cantavam o velho verso — “For whom the bell tolls, it tolls for thee” — o tempo se dobrou sobre si mesmo, como se o sino tocasse não pelo fim, mas pelo milagre de ainda sentir.

            Dizem que o amor é uma forma de resistência.

             E talvez seja.

             Porque apesar das telas, dos algoritmos e da pressa, ainda há quem feche os olhos e sinta o eco de um baile de 1993, o som de uma fita rodando, e o coração batendo na cadência de um refrão antigo.

            O sino continua a tocar.

            Não por tragédia — mas por lembrança.

             Por tudo o que fomos quando o amor ainda cabia em um abraço tímido, em um bilhete dobrado, em um olhar que dizia mais que qualquer emoji.

            O sino toca, e o mundo se cala por um instante.

             É o som da saudade — o som de nós.

            O tempo passou outra vez, como uma maré que leva o que resta das pegadas.

            Em 2025, Rafael caminhava pela rua principal de Santo Amaro, agora quase irreconhecível.          

            As vitrines eram digitais, os rostos distraídos, e a pressa havia tomado o lugar do vento.

             Ele parou em frente ao ginásio.

            O prédio ainda estava lá, gasto, com as janelas quebradas e um letreiro desbotado.

            O mesmo chão onde eles dançaram agora guardava poeira e silêncio.

             E mesmo assim, ao fechar os olhos, ele ouviu a música.

             O som vinha de dentro — um eco impossível.

            Isabela chegou alguns minutos depois, sem ter combinado.

             O acaso, talvez, ainda seja a maneira mais misteriosa de o destino se manifestar.             Ela sorriu com o espanto de quem reconhece o tempo no outro.

             Nenhum dos dois precisou dizer nada.

             Ficaram ali, olhando o ginásio, como quem assiste a própria juventude em ruínas.

            A canção tocava em suas lembranças, não no rádio.

            Não havia mais fita, mais baile, mais promessas.

            Só o som de um sino que insistia em existir, mesmo quando tudo o mais parecia se apagar.

            Ela tirou do bolso um fone de ouvido e ofereceu a ele uma das pontas.

             No celular, procurou a música.

            O primeiro acorde dos Bee Gees soou, limpo, digital, sem chiado.

            Mas por algum motivo, os dois sentiram falta do chiado.

            Era como se o ruído antigo fosse o que tornava o amor mais humano.

            O que é o amor sem imperfeição?

            O que é a memória sem rachadura?

            Ficaram em silêncio enquanto a melodia os envolvia.

            As palavras da música pareciam agora escritas para eles, para o tempo, para tudo o que se perde e volta transformado.

            Quando a canção terminou, Rafael disse: “Talvez o sino toque por todos nós, não é?  Pelos que se amaram, pelos que esqueceram, pelos que tentam lembrar.”             Isabela assentiu.  “Sim. Ele toca porque estamos vivos. E porque ainda sentimos.” Ficaram algum tempo ali, observando o entardecer refletido nos vidros quebrados.

            O céu se tingia de laranja, o mesmo tom do vestido dela, trinta e dois anos antes.             A cidade se movia ao redor, indiferente.

            Mas dentro deles, algo se movia devagar — uma espécie de paz.

            Rafael pensou em como o mundo havia se afastado de si mesmo, em como as pessoas agora se mediam em curtidas, e não em olhares.

             Mas naquele instante, ele entendeu que ainda era possível voltar. Não no tempo, mas na essência.

            Bastava lembrar, bastava sentir

            A saudade, afinal, é uma forma de eternidade.

            Quando o sino da igreja da praça tocou seis vezes, o som atravessou o ar como uma bênção antiga.

            Eles se entreolharam.

             E sorriram.

            O sino tocava não por fim, mas por recomeço.

            Isabela guardou o celular, e o silêncio voltou a reinar.

            Mas não era um silêncio triste — era o silêncio das coisas que finalmente encontram seu lugar.

            Caminharam lado a lado, devagar, sem promessas, sem pressa.

             O amor, talvez, não precise mais ser vivido.

            Às vezes, basta ser lembrado.

            E lembrar, descobriam agora, era uma forma de ainda amar.

            O sol descia atrás das árvores, e o vento trazia o cheiro distante do ginásio, da cera, do tempo.

            Isabela olhou para Rafael e disse baixinho: “Sabe, talvez o amor não tenha acabado. Talvez só tenha mudado de endereço.”

            Ele sorriu e respondeu: “Sim. Talvez agora more na memória.”

            Seguiram pela rua enquanto o sino tocava outra vez, dissolvendo-se no ar como o último acorde da música.

             E o mundo, por um instante, pareceu voltar a ser 1993 — o ano em que o amor ainda era inocente, e o futuro cabia inteiro dentro de uma canção.



            E assim, entre o ruído do passado e o silêncio do presente, o sino tocou mais uma vez.

            Tocou por eles, por todos os que amaram, esperaram e perderam.

             Tocou por nós.

    

E continuará tocando — enquanto houver alguém que ainda se lembre de dançar, mesmo sozinho, ao som de um amor que não se repete, mas nunca deixa de existir.

            “For Whom the Bell Tolls”…


Clayton Alexandre Zocarato

Possui graduação em Licenciatura em História pelo Centro Universitário Central Paulista (2005) - Unicep - São Carlos - SP, graduação em Filosofia pelo Centro Universitário Claretiano (2016) - Ceuclar - Campus de São José do Rio Preto – SP, Técnico em Comércio Exterior pelas Faculdades Eficaz, e atualmente cursa Serviços Jurídicos e Notoriais na Unimar. Escrevo regularmente para o site www.recantodasletras.com.br usando o pseudônimo ZACCAZ, mesclando poesia surrealista, com haikais e aldravias..Formado Especialista em Medina y Arte com ênfase em Gilles Deleuze e Equizoanálise   onde é também  pesquisador do Centro de Medicina y Arte  de Rosário – Argentina, sendo o primeiro brasileiro a atuas nesse centro de pesquisa. Especialista em Ensino pela Ufscar, especialista em Psicopedagogia Institucional pela Fundepe – Unesp, Especialista em História da África pela Faculdade de Minas Gerais.

·                  Email: claytonalexandrezocarato@yahoo.com.br

·                  Instagram: Clayton.Zocarato

·                  Facebook: https://www.facebook.com/clayton.zocarato/


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