Sob a Luz Líquida de Nova York - por Clayton Zocarato

 

(Conto Baseado na Canção de Robin Gibb Another Lonely Night in New York – 1983)

Era o início dos anos 1980, e Nova York brilhava como se tivesse engolido todas as luzes do mundo e as cuspido de volta em forma de néon líquido.

            A cada esquina, uma promessa; a cada avenida, uma fuga possível; e em cada bar iluminado por luzes azuladas, uma música lenta que tentava costurar corações partidos.

             Naquela época, tudo parecia urgente, intenso e fugidio, como se a própria vida tivesse receio de parar para respirar.

             E era nesse cenário que Helena caminhava todas as noites, deixando que a voz aveludada de Robin Gibb, escorrendo pelas janelas dos carros e saindo das portas entreabertas dos clubes, acompanhasse suas dúvidas, sua saudade e seu desejo secreto de encontrar um amor que fosse real o suficiente para ser doloroso e forte o suficiente para sobreviver ao silêncio.

            Helena tinha uma alma romântica deslocada naquela cidade que devorava sentimentos com a mesma facilidade com que digeria sonhos.

            Ela trabalhava em uma livraria em *Soho, onde livros velhos perfumavam o ar com a poeira macia das histórias que sobreviveram ao tempo.

            Gostava de observar os casais que entravam de mãos dadas, procurando algo que os descrevesse. Mas, ao contrário deles, Helena não procurava definições; ela buscava presença.

             Queria alguém que chegasse sem anúncio e permanecesse mesmo quando seus olhos ficassem úmidos e suas palavras faltassem.

            Ainda assim, quando caminhava para casa ao fim do expediente, o vento frio cortava sua pele como quem lembra que nem todo desejo encontra repouso nos braços de outra pessoa.


            Numa dessas noites, enquanto a chuva fina transformava as calçadas em espelhos trêmulos, Helena ouviu, pela rádio de uma lanchonete, as primeiras notas de “Another Lonely Night in New York”, aquela melodia lenta que parecia atravessar o peito de quem a escutasse.

            A música vibrava suave, como um lamento doce, e algo nela fez Helena parar.             Era como se Robin Gibb cantasse exatamente aquilo que ela nunca tinha dito em voz alta: que a solidão não é ausência de pessoas, mas ausência de quem nos enxerga de verdade.

             Ela ficou ali, imóvel por longos segundos, encarando seu próprio reflexo na vitrine e percebendo que a cidade, apesar de enorme, se estreitava quando o coração pesava.

            Foi então que conheceu Daniel, um fotógrafo que buscava registrar o lado invisível da cidade. Ele apareceu ao seu lado, sem anúncio, segurando a câmera com a naturalidade de quem segura um amuleto.

             Perguntou se ela também estava ouvindo a música. Ela respondeu que estava tentando entender por que aquela canção parecia lhe atravessar a alma.

            Ele sorriu de um jeito tímido, como quem descobre algo precioso demais, e disse que músicas lentas tinham o poder de revelar o que as pessoas passam a vida tentando esconder.


            Foi assim, entre uma confissão inesperada e um sorriso que parecia tão frágil quanto verdadeiro, que os dois começaram a caminhar juntos naquela noite.

            Os encontros seguintes foram tão discretos que pareciam nascer do próprio abandono da cidade.

            Eles conversavam caminhando por ruas vazias, como se o mundo inteiro fosse um grande corredor onde seus passos encontravam eco.

            Em certos momentos, eles não diziam nada, apenas ouviam músicas lentas vindas de algum apartamento distante, deixando que suas sombras se tocassem antes que suas mãos tivessem coragem de fazer o mesmo.

             A intimidade entre eles cresceu de forma silenciosa e profunda, como águas subterrâneas que correm fortes mesmo quando ninguém vê.

            Helena, acostumada à solidão quase orgulhosa, começou a permitir que Daniel se aproximasse dos seus medos.

            Ele, por sua vez, encontrava nela um abrigo que não sabia que buscava.

            Mas os anos 1980 eram feitos de pressa e incerteza.

             A cidade brilhava demais e cobrava caro por cada centímetro de ternura que concedia.

             Daniel, que vivia correndo atrás de oportunidades e tentando capturar imagens que definissem sua carreira, começou a desaparecer em longas viagens, ensaios, compromissos.

             Helena tentava compreender, tentando não impor ao amor o peso de suas inseguranças, mas sentia o velho vazio colher suas bordas novamente.

            E, todas as vezes que ele partia, a música de Robin Gibb a acompanhava como um aviso: às vezes o amor real dói não pelo que falta, mas pelo que não pode permanecer.

            O futuro parecia sempre suspenso entre eles, como um filme que trava na cena mais tensa.

            E, aos poucos, ambos perceberam que o amor que sentiam era grande demais para caber no tempo que tinham.

             O que era doce começou a adquirir um gosto amargo de despedida. Não havia brigas, nem mágoas, apenas a constatação lenta e melancólica de que certas ligações, por mais profundas, nascem destinadas ao intervalo.

            Helena compreendeu que amar alguém também era deixá-lo seguir a luz que precisava, mesmo quando essa luz não iluminava o caminho dela.

            Quando Daniel partiu definitivamente para trabalhar na Europa, deixando apenas uma carta com palavras trêmulas e uma fotografia deles caminhando na chuva, Helena sentiu a cidade silenciar de repente.

            Nova York ficou maior e mais vazia, como um cenário abandonado depois do fim de uma peça.

             Ela voltou a caminhar sozinha, mas agora a ausência tinha forma, cheiro e lembrança.

            Ainda assim, a solidão não era mais a mesma; ela carregava dentro de si a certeza de ter vivido algo verdadeiro, algo que a marcaria por muito tempo.

            A música lenta que ecoava pelas ruas era menos um lamento e mais um lembrete do que ainda poderia existir.

            Os anos passaram, e Helena, que continuou trabalhando entre livros e histórias, descobriu que o amor real não desaparece — ele se transforma.

            A solidão que antes parecia pesada se tornou uma companhia serena, quase madura. Ela passou a compreender que o vazio existencial não é apenas falta de algo, mas espaço para o que virá.

            E naquele espaço, guardado como uma cicatriz bonita, estava Daniel, estava a cidade, estava a música. Sempre que a noite caía e Nova York se tingia de azul profundo, Helena colocava a canção de Robin Gibb para tocar.

            E, ao ouvir a melodia lenta deslizando pelo quarto, sentia novamente a promessa silenciosa de que a vida sempre oferece novos encontros, novas ruas, novos corações.

            Assim, mesmo rememorando todos os ecos de amor que ficaram perdidos entre o século e o futuro, Helena aprendeu a caminhar sem medo.

             Aprendeu que a solidão é parte do amor, que o amor é parte do tempo e que o tempo, esse maestro paciente, sempre devolve ao coração aquilo que ele está pronto para receber.

             E enquanto “Another Lonely Night in New York” se tornava fundo musical de tantas noites vazias, ela percebia que a música lenta tinha o poder de transformar saudade em força, silêncio em repouso e dor em poesia.

            Porque, no fim, é sempre a música — suave, profunda, melancólica e eterna — que nos ensina que nenhum coração permanece realmente sozinho quando encontra uma melodia capaz de abraçá-lo.

            Helena deixou que a última nota da canção se misturasse ao silêncio do apartamento, um silêncio que já não lhe pesava como antes, mas que ainda provocava pequenas marés de lembrança.

            Caminhou até a janela e observou a cidade que nunca dormia, mas que naquela noite parecia cochilar sob o peso de suas próprias luzes.

            De certa forma, ela sentia que também despertava e repousava ao mesmo tempo, vivendo entre a memória do que fora e a promessa tênue do que ainda poderia ser.

            O inverno se aproximava, e com ele vinha aquela sensação de suspensão, como se o ar carregasse histórias que ainda buscavam lugar para pousar.

            Era estranho perceber que, mesmo depois de tanto tempo, o poder de uma música lenta interrompia o curso dos dias, trazendo novamente à tona tudo aquilo que ela havia aprendido a guardar sem esconder.

             Talvez porque canções assim possuam o dom de abrir portas que o tempo tenta fechar suavemente, mas jamais consegue trancar por completo.

            Com o rosto encostado no vidro frio, Helena imaginou onde Daniel estaria naquele momento. Não com tristeza, mas com uma curiosidade serena.

            Pensou nele caminhando por alguma avenida europeia, talvez fotografando pessoas que ela jamais conheceria, talvez ouvindo músicas lentas em um café distante, talvez sentindo por ela um tipo de saudade leve, daquela que não dói, mas aquece.             Percebeu que, no fundo, carregava um desejo silencioso: que ele também guardasse sua própria recordação daquela Nova York úmida, das caminhadas sob chuva, das conversas ditas em meio ao murmúrio incansável da cidade.

            Queria acreditar que, em algum momento, ele ouvia a mesma canção e sorria, ainda que por dentro. Não por saudade do que não pôde ser, mas por gratidão daquilo que foi.

            O telefone tocou de repente, cortando suavemente o fio de seus pensamentos.             Era apenas uma amiga da livraria, confirmando o horário do turno do dia seguinte.

             Nada demais, nada profundamente significativo, mas foi o suficiente para que Helena percebesse como pequenas presenças cotidianas continuavam a formar a textura de sua vida.

            Desligou o telefone e deixou que seus passos a levassem até a mesa onde guardava algumas lembranças: pequenos papéis amarelados, ingressos antigos, uma fotografia em que ela e Daniel mal apareciam, recortados pela chuva e pela luz.

            Passou o dedo sobre a imagem e sentiu algo parecido com ternura pura, sem dor, sem saudade sufocante.

            Apenas uma chuva distante que ainda caía dentro de si.

            Fechou a caixa, mas não para afastar o passado; fechou para protegê-lo.

            Nos dias seguintes, Helena retomou seu ritmo de sempre, mas percebeu algo diferente em si mesma.

             A cidade parecia menos pesada, como se tivesse devolvido um pouco do ar que ela não sabia que lhe faltava.

             Nas manhãs frias, enquanto arrumava livros nas prateleiras, sentia uma espécie de renovação, um desejo lento e crescente de se abrir novamente para outras histórias.             Às vezes, um cliente perguntava sobre romances clássicos, e ela tinha vontade de contar que, por trás de cada capa, existia um coração que tinha amado e perdido, sofrido e continuado.

            Em outras vezes, alguém pedia indicações de poesia, e ela sorria, porque agora entendia melhor o que fazia certos versos pulsarem dentro do peito.

            Numa tarde particularmente cinzenta, a livraria recebeu um homem mais velho, com cabelos desgrenhados e um olhar curioso.

             Ele pediu um livro sobre a música dos anos 1980, e Helena o acompanhou até a seção correspondente.

             Quando ela mencionou Robin Gibb, o homem sorriu, como se reconhecesse algo importante. Contou que tinha trabalhado por anos em pequenas rádios e que acreditava que músicas lentas eram a salvação secreta de muitas almas solitárias.

            Disse que, nas noites de transmissão, recebia ligações de pessoas que encontravam naquele tipo de canção a coragem de continuar vivendo.

             Helena ouviu cada palavra como quem escuta uma verdade essencial.

             Não porque fosse novidade, mas porque alguém, finalmente, dizia em voz alta aquilo que ela sentia desde sempre: que a música lenta é um abraço que não nos pede nada em troca.

            Depois desse encontro, ela passou a refletir mais profundamente sobre como a música, o amor e a solidão se entrelaçavam em sua própria história.

             Percebeu que havia vivido os anos 1980 como quem atravessa uma ponte sem notar sua beleza até chegar ao outro lado.

            Agora, adulta, olhando para trás, compreendia que o amor real que sentira — aquele amor que não implora por permanência, mas que deixa marcas suaves e persistentes — havia moldado sua forma de existir.

            Entendeu que a solidão que tantas vezes temera era, na verdade, o terreno onde sua sensibilidade florescia.

             E que o vazio que um dia a assustara se tornara espaço fértil para novos sentimentos.

            Numa noite de primavera, enquanto organizava os últimos livros antes de fechar a loja, Helena ouviu pelo rádio uma versão ao vivo de “Another Lonely Night in New York”, tocada em algum programa especial sobre clássicos das décadas passadas.

            Era como se o universo decidisse tomar sua mão mais uma vez.

             Ela desligou as luzes da loja, trancou a porta e começou a caminhar pelas ruas que tanto conhecia.

            A cidade estava diferente, mas ao mesmo tempo igual.

            Os prédios continuavam brilhando, os táxis passando apressados, os sons se misturando em uma coreografia caótica e familiar.

             E, no entanto, algo no ar fazia com que tudo parecesse novo, como se ela pudesse recomeçar qualquer coisa a qualquer momento.

            A melodia a acompanhava enquanto os passos ecoavam pela calçada molhada pela chuva fina da noite anterior.

            E, naquele instante, Helena sentiu algo mudar dentro de si.

            Era como se, finalmente, o futuro que sempre a assustara estivesse ali, ao alcance da mão, esperando apenas que ela aceitasse caminhar em direção a ele.

             Parou por alguns segundos, respirou fundo e deixou que a música lenta penetrasse cada parte de seu corpo.

            Não era mais tristeza. Não era mais perda. Era transformação.

            Percebeu, então, que as consequências do amor real não se encerram no fim do romance, nem se partem com a distância entre duas pessoas.

            Elas permanecem como um brilho que ilumina cada passo futuro, como uma cicatriz bonita que não dói, mas ensina.

             E, naquele momento, Helena soube que tudo o que tinha vivido — todas as noites solitárias em Nova York, todas as músicas lentas que a embalaram, todos os amores que passaram e todos os silêncios que permaneceram — a preparavam para algo que ainda viria.

            Algo que ela não precisava apressar, nem temer. Apenas sentir.

            Caminhando pela cidade que a vira amar, perder e recomeçar, ela sorriu.

            Não sabia o que o futuro lhe reservava.

            Talvez conhecesse alguém. Talvez viajasse. Talvez continuasse encontrando música lenta em rádios aleatórias. Talvez simplesmente continuasse crescendo por dentro.

             Mas sabia, com absoluta certeza, que não teria mais medo do vazio, da solidão ou da lembrança.

            Porque agora entendia que a vida é feita de noites que às vezes são solitárias, mas nunca totalmente vazias.

            E que, sempre que precisasse, bastaria apertar o play de uma canção lenta para lembrar quem ela era, quem tinha amado e quem ainda poderia se tornar.

            E assim, enquanto a voz suave de Robin Gibb se misturava ao perfume úmido da cidade, Helena seguiu caminhando.

            Com passos firmes, com o coração sereno, com o futuro aberto diante de si. E, naquele instante, percebeu que, mesmo em outra noite solitária em Nova York, ela já não estava só.

            Estava acompanhada pela certeza de que o amor verdadeiro, ainda que breve, permanece para sempre no ritmo lento da alma.

            E que cada música suave carregada pelo vento traz consigo a promessa silenciosa de que a vida continua — sempre com a doçura de quem já aprendeu a amar o próprio caminho.

 


*Bairro de Nova York



Clayton Alexandre Zocarato

Possui graduação em Licenciatura em História pelo Centro Universitário Central Paulista (2005) - Unicep - São Carlos - SP, graduação em Filosofia pelo Centro Universitário Claretiano (2016) - Ceuclar - Campus de São José do Rio Preto – SP, Técnico em Comércio Exterior pelas Faculdades Eficaz, e atualmente cursa Serviços Jurídicos e Notoriais na Unimar. Escrevo regularmente para o site www.recantodasletras.com.br usando o pseudônimo ZACCAZ, mesclando poesia surrealista, com haikais e aldravias..Formado Especialista em Medina y Arte com ênfase em Gilles Deleuze e Equizoanálise   onde é também  pesquisador do Centro de Medicina y Arte  de Rosário – Argentina, sendo o primeiro brasileiro a atuas nesse centro de pesquisa. Especialista em Ensino pela Ufscar, especialista em Psicopedagogia Institucional pela Fundepe – Unesp, Especialista em História da África pela Faculdade de Minas Gerais.

·                  Email: claytonalexandrezocarato@yahoo.com.br

·                  Instagram: Clayton.Zocarato

·                  Facebook: https://www.facebook.com/clayton.zocarato/


Venha ser um Escritor de sucesso! 

Conheça os escritores que estão brilhando no Jornal Alecrim! #EscritoresDeSucesso

Promova seus livros e sua carreira literária com o plano de divulgação da Jornal e Editora Alecrim. Tenha suas obras divulgadas nas principais redes sociais, jornais e eventos literários do Rio de Janeiro e região. Conecte-se com seu público e alcance o sucesso que você merece. Aproveite essa oportunidade única e alavanque sua carreira literária agora!

Comentários

Postagens mais visitadas