Quando o Céu Tocou a Terra - por Clayton Zocarato
No
final de uma década marcada por brilhos de neon, revoluções silenciosas e o
palpitar turbulento de um mundo que buscava se reencontrar, a juventude
caminhava como quem sonhava acordado.
Era 1987, e pelas ruas agitadas de
Los Angeles soprava o vento quente da mudança – um vento que carregava nas suas
franjas elétricas o ritmo sonhador e psicodélico que ecoava da voz de Belinda
Carlisle em Heaven Is a Place on Earth. Essa canção, que parecia abrir portais
invisíveis, era o pano de fundo de um romance que se escrevia em passos lentos,
como quem dançava com o próprio destino.
Lea tinha vinte anos e carregava nos
olhos uma inquietação brilhante. Filha de migrações, de mapas mudados às
pressas e de esperanças costuradas a fitas cassete, ela caminhava pela vida
como uma garota que entendia intuitivamente que cada batida musical podia ser
um sinal – um mapa secreto que apontava para outro possível futuro. Já Matheo, dois anos mais velho, era
estudante de filosofia e músico amador; trazia nos bolsos textos de Foucault,
nas mãos calos de violão e no olhar a chama constante de quem acreditava que o
mundo poderia ser reinventado com uma canção.
Ele se conheceram num pequeno café
que abrigava jovens sonhadores – artistas, poetas, punks cansados de protestar
em silêncio, espíritos indomáveis que buscavam ternura num tempo marcado pela
Guerra Fria, pela sombra do neoliberalismo nascente e pela euforia da cultura
pop que florescia das rádios às discotecas.
Era um período em que o planeta
parecia dividido entre medo e fantasia: de um lado, o receio das tensões
nucleares, das economias instáveis, das notícias sobre crises e conflitos; do
outro, videoclipes brilhando na MTV, sintetizadores que transformavam cotidiano
em sonho, filmes que pintavam realidades alternativas com cores quase
impossíveis.
As pessoas buscavam refúgio na arte, e a arte,
quase como um ser vivo, oferecia sua mão. Assim, quando Heaven Is a Place on
Earth tocou pela primeira vez para Lia e Matheo juntos, eles sentiram uma
espécie de promessa não nomeada. A bateria pulsava como o coração de uma cidade
que queria acreditar no amanhã, os teclados desenhavam ondas de luz no ar, e a
voz de Belinda parecia sussurrar que, apesar de tudo, a esperança não era um
delírio – era uma escolha.
Numa noite de dezembro, enquanto a
cidade tinha o brilho úmido das luzes refletidas nas vitrines, caminharam até uma antiga fábrica abandonada
que um grupos de jovens haviam transformado em um espaço cultural clandestino.
Ali, paredes quebradas se misturavam com grafites coloridos que proclamavam
frases como “o amor é revolucionário”
e “o futuro começa quando deixamos de
temê-lo”. Havia um palco improvisado, sobre o qual bandas independentes
tocavam sons que misturavam ecos do pós-punk com o otimismo crescente do pop
eletrônico.
A cultura musical se transformava
diante deles: guitarras ainda feriam o ar com angústia, mas agora
sintetizadores criavam atmosferas que lembravam sonhos líquidos, e muitos
acreditavam que aquelas melodias psicodélicas tinham o poder secreto de unir as
pessoas num espaço onde a realidade era menos cruel.
Enquanto caminhavam entre os jovens
que dançavam, Lea segurou a mão de Matheo e, com um sorriso tímido, disse que a
canção de Belinda parecia feita para aquele instante.
Lea, com o coração tropeçando de leve,
respondeu que o mundo estava tão pesado que qualquer música que falasse de céu
na terra era quase um oásis perfeito de amor e sonho pleno.
Quando o refrão ecoou mais uma vez —
in this world we’re just beginning… to understand the miracle of living…
— foi como se toda a década, com seus brilhos e sombras, se condensasse naquele
instante.
As tensões políticas, as revoluções
artísticas, a cultura musical fluorescente, os sonhos punk, os medos atômicos,
as pinturas de rua, os videoclipes, a rebeldia e a doçura: tudo se misturava e
formava um sentimento singular, uma grande respiração coletiva de esperança.
Lia segurou a mão de Matheo. E o
mundo, por um breve e precioso momento, pareceu cumprir a promessa da música: o
céu era um lugar na Terra. Ali mesmo.
Entre jovens que ousavam imaginar
uma existência melhor.
As décadas mudariam, as músicas
mudariam, o planeta giraria entre novas crises e renascimentos. Mas aquela
noite, aquele amor nascente e aquela canção permaneceriam como um farol: um
lembrete de que o futuro sempre começa quando alguém, em algum lugar, decide
que o sonho vale mais que o medo.
E assim, enquanto a última batida da
música vibrava nos prédios e nas estrelas artificiais da cidade, eles
caminharam juntos.
Dois jovens apaixonados, carregando
em si o mesmo impulso que movia a juventude do mundo inteiro: a certeza
luminosa — quase psicodélica, quase ingênua, totalmente verdadeira — de que o
céu é feito onde existe coragem de amar e de imaginar.
Quando saíram caminhando naquela
noite, de mãos dadas, como se o mundo tivesse lhes concedido um passe
temporário para a eternidade, nada parecia ameaçar a delicada arquitetura
daquele instante.
Porém, à medida que avançavam pelas
ruas úmidas, sentiram que algo novo se insinuava no ar — uma corrente que
soprava da década que nasceria em breve, trazendo consigo novas esperanças, mas
também novas contradições.
O fim dos anos 80 era como um
corredor onde portas iam se fechando, enquanto outras, ainda invisíveis,
começavam a se abrir.
Lea sempre achou fascinante essa
sensação de limiar histórico: estar entre o que já não é e o que ainda não se
tornou. Talvez por isso tivesse tanto amor pelo cinema — a arte que captura
fronteiras, que detém o tempo por alguns instantes antes de deixá-lo prosseguir.
Matheo, por sua vez, queria traduzir
esse sentimento em ondas sonoras, eternizar vibrações que escapam aos olhos. E,
naquela noite, enquanto caminhavam sem rumo, ambos sentiram que estavam vivendo
uma espécie de prólogo de algo maior.
O vento trouxe de algum lugar um eco
distante de guitarras e sintetizadores. A cidade parecia respirar música. Era
como se cada esquina fosse um palco, cada janela iluminada um teatro, cada
poste um farol apontando para um tempo que pulsava além da lógica.
O casal atravessou a avenida
principal e, depois de uma dobra estreita entre prédios, chegaram ao Píer de
Santa Aurelia, onde os jovens da cidade se encontravam para ouvir bandas
independentes e discutir o destino do mundo entre goles de café barato e sonhos
desproporcionais.
O lugar fervilhava. Uma banda local
testava instrumentos enquanto o público se juntava em pequenos círculos. Havia
poetas urbanos declamando versos, pintores trabalhando em murais improvisados,
ativistas distribuindo panfletos contra novos cortes públicos, estudantes
debatendo eleitores, eleições e o que esperar do início da década de 1990.
E, acima de tudo, havia uma sensação
de movimento: algo estava mudando na cultura, na política, na percepção
coletiva. As cores neon cediam espaço a tons mais introspectivos; o brilho
extravagante começava a se misturar com a maturidade inquieta que acompanharia
os anos 90.
— Ouve isso — disse Matheo,
inclinando-se para o palco.
A banda começara a tocar uma música
que lembrava vagamente o espírito de Heaven Is a Place on Earth: melodia
ascendente, harmonia que abria espaço para o infinito, uma batida que parecia
levar o corpo a dançar mesmo sem intenção. Mas havia também uma melancolia que
anunciava o fim de uma era. Era como se a própria juventude estivesse compondo
o hino de sua passagem.
Lea fechou os olhos e tentou
memorizar tudo: o cheiro de maresia misturado ao spray das latas de tinta, as
conversas cruzadas sobre democracia e liberdade cultural, o lampejo dos
isqueiros que acendiam cigarros clandestinos, os passos descompassados dos dançarinos
improvisados, o reflexo das luzes no rosto de Matheo.
Cada detalhe parecia carregar uma mensagem —
não apenas para ela, mas para quem quer que um dia olhasse para trás buscando
compreender aquelas décadas.
— Parece que o mundo vai se
reinventar — ela disse.
— O mundo sempre tenta — respondeu Matheo,
meio rindo. — Mas às vezes é a gente que muda primeiro.
Ela gostou da frase. Gostou tanto
que pensou em usá-la no roteiro do curta-metragem que começara a escrever. Era
uma história sobre dois jovens que se conhecem pouco antes de um grande evento
político e precisam aprender a confiar no futuro, mesmo quando o mundo insiste
em lembrá-los do contrário.
A música no palco ficou mais
intensa, mais ruidosa, mais elétrica — como os corações, como a cidade, como o
planeta inteiro em 1989. Enquanto isso, a conversa ao redor do casal girava
sobre a queda iminente de regimes na Europa, a ascensão de novos movimentos
sociais, o medo da crise econômica, a promessa tecnológica dos computadores
pessoais, a estética que aos poucos migrava para o minimalismo e o grunge.
Tudo parecia vivo, vibrante,
contraditório, como se a história inteira estivesse em palco aberto,
improvisando diante de seus olhos.
Foi então que descobriram que o píer
abrigava uma sala secreta, nos fundos, onde alguns cineastas amadores
projetavam filmes durante a madrugada. Lia arregalou os olhos quando soube; Matheo
sorriu como quem encontra um tesouro. Atravessaram o corredor escuro, guiados
apenas por uma luz azulada, e chegaram a uma pequena sala underground decorada
com pôsteres de Tarkovsky, Jarmusch, Agnes Varda, Wim Wenders, filmes
experimentais e manifestos artísticos. No chão, almofadas coloridas; nas
paredes, rabiscos de caneta com poemas e reflexões sobre identidade, sociedade
e utopia.
Ali, projetava-se um documentário
sobre as transformações culturais no mundo pós-1985. Mostrava jovens em Berlim,
em Nova York, em São Paulo, em Tóquio. Gente que acreditava, como Lia e Mateo,
que a arte poderia ser o canal pelo qual o futuro se infiltraria no presente.
O filme mostrava festas
clandestinas, protestos estudantis, rádios independentes, exposições de arte
efêmera. Era como assistir ao próprio espírito da juventude materializado.
Lia se emocionou em silêncio. Matheo
passou o braço ao redor dela. Ambos sabiam que aquela era a vida que queriam:
uma vida vivida com intensidade estética, política e afetiva. Uma vida onde o
amor não fosse fuga, mas força.
Quando saíram da sessão, o vento
havia ficado mais frio, e o mar refletia fragmentos das luzes artificiais como
se fossem constelações caídas. O ano estava terminando. A década estava
terminando. E eles, sem perceber, estavam se tornando protagonistas de um tempo
que ainda não sabia seu próprio nome.
No caminho de volta, falaram sobre o
futuro. Sobre como desejavam criar juntos — ela com filmes que fossem janelas
para a alma, ele com músicas que fossem pontes entre mundos.
Falaram também sobre política, sobre
injustiças que queriam combater, sobre o desejo de não se render ao cinismo que
muitos adultos cultivavam como proteção.
— Talvez a nossa geração tenha vindo
ao mundo para lembrar que a esperança não é ingenuidade — disse Lea.
— É resistência — completou Matheo.
E ambos sorriram, porque entendiam
que a frase era verdadeira.
Chegaram ao edifício abandonado que
servia de ateliê para artistas e subiram até o terraço onde tantas vezes haviam
conversado. A cidade se estendia à sua frente como um organismo luminoso: viva,
inquieta, imperfeita, bela.
E enquanto observavam o horizonte, uma nova
versão remixada de Heaven Is a Place on Earth começou a tocar no radinho
portátil de um grupo próximo. A canção voltava como um fio condutor — como se
dissesse que a juventude, apesar de tudo, ainda podia acreditar no impossível.
Lea e Mateo se abraçaram. Não sabiam
o que o futuro lhes reservava — crises, transformações, alegrias, perdas,
revoluções. Mas naquele momento, ali, no encontro entre duas décadas, sabiam
que estavam prontos.
O céu, afinal, não era um destino
distante.
Era um gesto.
Era um sonho compartilhado.
Era um amor que resistia.
Era a juventude inteira, com suas
cores, sua lucidez psicodélica e sua vontade de conquistar o impossível,
dizendo ao mundo:
“Nós estamos aqui. E não vamos parar
de imaginar.”
E assim, sob o céu híbrido dos anos
80 e 90, com música vibrando entre estrelas artificiais, eles deixaram que a
noite continuasse — infinita, viva e luminosa — como todas as noites que
pertencem aos que ousam acreditar.
Possui graduação em Licenciatura em História pelo Centro Universitário Central Paulista (2005) - Unicep - São Carlos - SP, graduação em Filosofia pelo Centro Universitário Claretiano (2016) - Ceuclar - Campus de São José do Rio Preto – SP, Técnico em Comércio Exterior pelas Faculdades Eficaz, e atualmente cursa Serviços Jurídicos e Notoriais na Unimar. Escrevo regularmente para o site www.recantodasletras.com.br usando o pseudônimo ZACCAZ, mesclando poesia surrealista, com haikais e aldravias..Formado Especialista em Medina y Arte com ênfase em Gilles Deleuze e Equizoanálise onde é também pesquisador do Centro de Medicina y Arte de Rosário – Argentina, sendo o primeiro brasileiro a atuas nesse centro de pesquisa. Especialista em Ensino pela Ufscar, especialista em Psicopedagogia Institucional pela Fundepe – Unesp, Especialista em História da África pela Faculdade de Minas Gerais.
· Email: claytonalexandrezocarato@yahoo.com.br
· Instagram: Clayton.Zocarato
· Facebook: https://www.facebook.com/clayton.zocarato/
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